Editorial

Nada a acrescentar

António Rego
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Acho que, tudo somado, o tempo que vivemos é o menos mau dos tempos que conhecemos da história. Não creio que seja possível apontar um século, uma década, um ano preciso em que a humanidade tivesse optimizado o seu ponto de equilíbrio, os jogos da guerra e da paz, da riqueza e da pobreza atingissem os graus desejáveis e perfeitos num mundo em contínuo movimento. Por que nos voltamos excessivamente para os nossos estreitos metros quadrados e para os minutos antes e depois do agora, como que nos vemos deformados em espelhos de medo e desalento, quais testemunhas oculares de quedas caóticas de todos os edifícios que constituíram o melhor da nossa cidade desejada e imaginária. Mas é assim. Caminhamos pelas ruelas estreitas da euforia e do desalento, esmagados pela amplificação dos acontecimentos em velocidade acelerada que nos roubam a paz. A paz? Mas será paz o desconhecimento e o silêncio, a ficção alienante que esconde o real até que ele se precipite como uma hecatom-be sobre a nossa pequena urbe? S. Isaac, o Sírio (sec VII), monge em Nínive, perto de Mossul, actual Iraque, escreveu num dos seus discursos ascéticos:"A vida neste mundo é semelhante àqueles que formam palavras com letras, acrescentando-as, retirando-as, e alterando-as a seu bel prazer. Mas a vida do mundo futuro é semelhante ao que está escrito sem o menor erro nos livros selados com o selo real, a que nada falta e a que nada há a acrescentar". Este comentário ao "Evangelho Quotidiano" lança-nos bem na reflexão das nossas vidas como dobadoiras do efémero, onde cada acontecimento nos faz voltar a cabeça e o coração em direcções opostas. E nos sugere julgamentos precipitados e porventura injustos sobre o agora, amaldiçoando-o em benefício do ontem. O agora, no tempo, sempre foi assim. Tempos virão em que se não acrescentará qualquer palavra. Temos de aceitar este drama. E acreditar no futuro sólido e imutável. Eis é a grande diferença na leitura da história, do tempo, da evolução, do progresso, do porvir. Tudo tem importância. Mas só ganha significado o que desagua no futuro, "escrito sem o menor erro nos livros selados a que nada falta acrescentar". António Rego


Reflexo