Editorial

O fio da vida

António Rego
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O fio da vida Em tempo de paz é diferente: deixamos cair o acessório, o secundário, o insignificante. Ou se valorizamos o inútil é por veleidade ou esbanjamento. Na guerra, não: os pratos da balança funcionam com outros pesos. O que pesa não é o importante. O decisivo, a estratégia, o ataque, o recuo, a defesa, a espera, funcionam com outros parâmetros. Quem está na linha da frente encara todos os dias o limite, a vida ou a morte, a vitória ou a derrota, o tudo ou nada. O fim e os meios são duas peças que se entrecruzam e balançam com sustentáculos diferentes. Os princípios, leis, humanidade, humanidades, misericórdia e perdão, são objectos de outra liturgia. No campo de batalha, em serviço, em combate, apenas a metamorfose dos sentimentos pode gerar a vitória não apenas como alvo ambicionado mas como único objectivo aceitável. De permeio pode acontecer tudo porque tudo é nada sem a missão cumprida. Se é ou não legítimo, se respeita a Convenção de Genebra, ou os Direitos do homem, se é fogo amigo ou inimigo, se tem ou não efeitos colaterais, tudo isso no fio da vida ou da morte é acidental. A missão é o minuto certo do inimigo vencido e humilhado, reduzido ao silêncio e à submissão. A cena está mais que ensaiada nos armazéns de aço junto das docas e dos locais de tráfico. Os pistoleiros sobem, descem, escorregam, saltam, disparam, falham, atingem, são feridos, mortos, calados para sempre. Ou o contrário: fizeram saltar o sangue, testemunharam a vítima esvaída, observaram o embaciamento do olhar e a paralisação súbita de todos os movimentos. Foi nessa fronteira de vida e morte que tudo aconteceu com todo o saber, arte, simulação, crueldade, destemor, coragem, heroicidade e cobardia. E ternura, solidariedade, dúvida, espécie de compaixão, desespero. E esse indizível momento de dois seres humanos se encontrarem frente a frente, olhos nos olhos com a morte a separá-los por fracções de nada. Todo o obsceno arsenal bélico é secundário, insignificante, frio, metálico, complexo de porcas, pólvora e parafusos. O trágico da guerra é o que se passa no coração do homem. António Rego


Reflexo