Editorial

Profetas e carpideiras

António Rego
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Não precisamos perder-nos nas brumas da memória para notarmos que o nosso país se transformou em inumeráveis aspectos. De tal maneira que somos irreconhecíveis em relação ao que éramos há cinquenta anos atrás. Somos o povo que somos, com a nossa história com tons de epopeia e muitos tempos de pequenês e mesmo mediocridade. Ou talvez tudo aconteça ao mesmo tempo porque nunca fomos nem somos uma coisa só. Há, todavia, entre nós críticos profissionais cuja realização consiste em denegrir o que somos, com a petulante referência a estrangeirices como paraísos de referência. De tal forma que qualquer pensamento ou objecto, simplesmente por ser nosso, é intrinsecamente medíocre. Quem dera que o pessimismo fosse agora meu para nada disto ser verdade. Mas sabemos que uma espécie de fado menor se colou às cítaras plangentes dos críticos que nada mais sabem fazer na vida além de dizer que o mundo, o nosso mundo, vai muito mal. Na nossa dimensão, temos direito a um lugar digno na Europa e no mundo, sem nos assustarmos demasiado com os espectáculos mediáticos que continuamente se fazem com as nossas fragilidades. Só quem nunca saiu do país ou nunca viu Portugal de fora para dentro pode classificar-nos como um resto de tabela sem glória nem horizonte. O grito pela nossa dignidade, sem esconder as carências, deve estimular o que somos capazes de construir. Em boa verdade, com o nosso estilo e à nossa maneira, temos edificado história e vencido adamastores de subdesenvolvimento, medo, ignorância, insalubridade e atrasos de toda a ordem. No meio de crises e fraquezas infindas, muitas geradas pela nossa colagem a um mundo que não goza de grande saúde, ganhámos um estatuto de parceria com muitos povos e nações. Precisamos estimar-nos, sem projectos megalómanos, sem nos deixarmos guiar por quem se sente envergonhado pela pertença a um país como o nosso. Fazem mais falta os profetas que as carpideiras. António Rego


Reflexo