Editorial

Quando as palavras não passam

António Rego
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Ficámos enternecidos, e com razão, com o infindável número de depoimentos acerca do Padre Manuel Antunes. Vieram, na sua maior parte, do mundo da cultura e de gente insuspeita, ou melhor, muito suspeita, por não morrer de amores por coisas eclesiais e sobretudo eclesiásticas. Também não se pode dizer que fosse pelos muitos livros escritos, pois a maior parte dos textos do Padre Manuel Antunes nem se sabia que dele eram, pois se esconderam na sombra de cento e vinte cinco pseudónimos. Onde estaria, pergunta-se, esse fascínio? Recordo muito bem vedetas de televisão e alguns colegas de comunicação social retinta-mente laicos no sentido mais azedo do termo (dispenso-me, na circunstância, de dissertar sobre o laicismo) de tudo consentirem e elogiarem ao Padre Manuel Antunes. E o que sempre me ocorreu foi que, desse homem que ninguém conhece como Doutor ou Professor, brotava uma sabedoria transparente e humana que era muito mais que uma sapiência académica. Por isso as suas aulas embeveciam os aplicados e os cábulas, os que saíam da Faculdade com lauda e os que nunca tiveram nota que se visse ou brilho que oferecesse um currículo mediano. Ou ainda os que eram crentes ou os agnósticos e ateus, os católicos e os fiéis de outros credos. E dá impressão que, se se dissesse apenas Professor Antunes ou Manuel, ninguém sabia quem ele era. A palavra Padre entrava naquele conjunto de coisas sobre a história, a vida a mundividência, o humanismo, e tudo o que é possível ensinar numa Faculdade de letras que não vem em compêndios, não se prende a uma escola única, nem se repete na sebenta de ano para ano. O Padre Manuel Antunes tinha a magia de ligar os fios da história com a delicadeza e saber dum cirurgião que conjuga os quase invisíveis capilares com todo o corpo humano sem deixar nada solto mas o todo irrigado pela inteligência, bondade, saber, e consciência profunda que todo o ser humano é portador duma parte irrepetível da história do mundo. A evocação da memória do Padre Manuel Antunes é, de si, um facto complexo, plural, questionante sobre as certezas antecipadas que se exibem sobre teorias e pessoas. É muito importante continuar a perguntar por que não passaram as suas palavras, a maior parte das quais, apenas ditas. E que o vento não levou. António Rego


Reflexo