Editorial

Referendo II

António Rego
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Em chegando Abril, reaviva-se em nós a memória festiva da liberdade conquistada. Coadas as falácias de alguns heróis, ninguém pode retirar ao povo a autoria desse bem maior, desvanecido durante décadas entre sombras e brumas. A liberdade tem o preço incomensurável da dignidade de um povo. O povo foi fazendo diferentes escolhas políticas para o poder local, autárquico, legislativo, presidencial. Não consta, ao longo destes trinta anos, qualquer reclamação substantiva ou qualquer viciamento significativo no manejo das urnas. Aconteceu também um referendo sobre o aborto. Perguntava assim: â€Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?†Mais de cinquenta por cento disse “nãoâ€. Nem contentes nem descontentes questionaram a legalidade ou a autenticidade da resposta. Do segundo referendo, sobre regionalização, ninguém fala. Paulatinamente se foi lançando a ideia de revogar a decisão popular do primeiro referendo porque o seu resultado não agradava a alguns. Feriados, muito sol nesse Junho de 1998, tem sido algumas das razões apresentadas para tal. Nunca foi nem é explicado o que aconteceria a tal referendo se o resultado fosse o oposto. Há uma convergência curiosa de subtilezas: discursos de aquém e além - mar chamando estúpido e subdesenvolvido ao povo, barcos que quiseram remir as aniquiladas mulheres portugueses com um “maternalismo†colonizador; anúncios públicos em televisão de medicamentos abortivos; cenas de pavor ridículo com olhar sobranceiro sobre a mulher de berço luso, como a mais vilipendiada das filhas de Eva. Tudo isto se tolerou com pusilanimidade cobarde, em nome da liberdade... que prezamos. Não nos parece tão claro que o actual governo, eleito quase por aclamação - e reclamação - dê a entender que o referendo II sobre o aborto ocupa uma prioridade de fundo. Na Assembleia da República, já passa à frente dos muitos problemas que verdadeiramente atormentam os portugueses: a recessão económica, a fome real; as dezenas de empresas falidas; os muitos milhares de desempregados; os doentes que continuam na eterna lista de espera; os analfabetos que não diminuíram com a liberdade; os velhos e doentes que apodrecem se lhes faltar a caridade alheia; as aldeias que se transformam em desertos com casas fantasma; a insegurança alarmante em cidades e aldeias... E um rol de urgências que o povo sente e reclama. E que projectou na escolha deste governo. Por isso, a pressa do novo referendo sobre o mesmo tema, pedindo ao povo uma resposta que ele já deu é, no mínimo, bizarra. Para não dizer afrontosa. O povo que aclamou e reclamou é o mesmo. E não é amnésico. António Rego


Aborto