O P. José Cortes svd, a passar umas merecidas férias em Janeiro de Cima, sua terra natal, festejou com todos os seus familiares e conterrâneos, no passado dia 8 de Setembro, as bodas de prata de profissão religiosa. Desde 1986 que o P. Cortes está a trabalhar na Missão na Amazónia, Brasil. Homem aberto ao ser humano e à natureza, tem vivido ao lado do povo lutando muitas vezes pelos “sem terra” e contra toda a injustiça social. Missionário atento ao sopro do Espírito, viveu com particular interesse a V Conferência Latino Americana (LA) de Aparecida. É a partir desta vivência que lhe pedimos para trocar com os leitores do Contacto SVD algumas impressões sobre a importância desta Conferência para a Missão em toda a América Latina.
Contacto svd: A V Conferência Latino Americana, em Aparecida, será recordada como a Conferência Missionária por excelência. Quais são para ti os traços mais marcantes para a acção evangelizadora hoje na América Latina?
José Cortes: O documento final da Conferência de Aparecida, na opinião de muita gente, é o melhor documento produzido até hoje pelos bispos latino-americanos e reafirma o que há de melhor nas conferências anteriores e isso, segundo alguns teólogos brasileiros como Clodovis Boff e Comblin, dentro de um quadro teológico muito mais rico, seguro e homogéneo.
O documento apresenta três elementos-chave para uma acção evangelizadora hoje, na América Latina ou em qualquer parte do mundo: Fé viva em Cisto a partir de uma experiência de encontro (discipulado); fé essa que se irradia no mundo em forma de missão (apostolado) e que se prolonga na sociedade em termos de compromisso pela justiça e pela vida.
No documento vemos que o relançamento da missão evangelizadora do Continente Americano parte em tudo e sempre de Cristo. A fé é apresentada como uma experiência de encontro com a pessoa viva de Jesus Cristo. Não é uma simples aceitação de doutrinas ou uma opção ética ou tradição cultural.
A partir do documento, podemos dizer que a acção evangelizadora tem de mudar radicalmente. A Igreja Latino-americana tem-se dedicado a uma “evangelização de manutenção”. Manutenção de paróquias, manutenção de estruturas que não respondem aos novos desafios. A catequese tem sido simples doutrina e aceitação de fórmulas. É-se católico por tradição. Há que voltar ao encontro com Cristo, diz o texto. Os bispos propõem o itinerário de uma primeira iniciação à vida cristã, quer dizer: introduzir “mistagogicamente” os afastados da fé na escuta da Palavra, na oração pessoal e na Eucaristia.
Recriar um catolicismo de “iniciados” que verdadeiramente tenham um encontro pessoal com Cristo e com a comunidade.
Este processo não quer levar as pessoas para dentro da estrutura da Igreja, já que as próprias estruturas têm de se transformar. Quer “criar” cristãos a partir do encontro pessoal com Cristo e não com doutrinas. Clodovis Boff define assim este processo: “ Só um processo de iniciados mistagogicamente é realmente evangelizador, socialmente fecundo e eficazmente resistente ao secularismo moderno assim como aos proselitismos actuais.
Contacto svd: Esta nova etapa de evangelização que se pretende seja um maior compromisso missionário requer mudanças substanciais, uma vez que os métodos aplicados até agora parecem estar esgotados. Na tua opinião quais sãos as mudanças substanciais e quais os métodos a aplicar?
José Cortes: Anteriormente falei um pouco nas mudanças e nos métodos novos. No entanto gostaria ainda de acentuar alguns elementos que são importantes para entender a nova etapa que se prepara para a Evangelização na América Latina:
Em primeiro lugar, as paróquias. As paróquias continuam sendo a base de toda a pastoral na América Latina. O lançamento das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) foi um sopro do Espírito. No entanto poucas dioceses entenderam esse novo projeto evangelizador que se propõe sair das estruturas paroquiais e ir para o meio do povo. Poucas paróquias se transformaram em redes de comunidades eclesiais. No entanto, o caminho é esse: sair da estrutura burocrática e clerical da paróquia e inserir-se no meio do povo de Deus. Não devemos esperar que as pessoas apareçam na Igreja, mas devemos ir ao seu encontro. Graças a Deus, já há um caminho trilhado por alguns. No entanto tem de se transformar no caminho de toda a Igreja. No século XX as Ordens e Congregações assumiram paróquias e com isso somente uma pequena minoria se dedicou à missão. Assim mesmo usaram métodos adaptados ao século XVII ou XVIII, mas totalmente inadequados no século XX. Dedicaram-se ao mundo rural no momento em que 80% da população latino-americana migrava para as cidades.
Isto leva-nos a um segundo ponto: o mundo urbano. A nossa acção evangelizadora ainda não se deu conta das profundas transformações por que passou a América Latina.
Actualmente a realidade é totalmente urbana e nós continuamos com uma estrutura paroquial rural. Para não falar dos outros, até nós, Missionários do Verbo Divino na Amazônia, nos demos conta muito tarde desta nova realidade. Durante muito tempo o nosso trabalho concentrou-se sobretudo no interior e a cidade pouco interesse nos despertava. A partir de uma reflexão estamos revendo a nossa atitude para com a realidade urbana e a aceitação de novas paróquias.
O terceiro ponto está relacionado com o papel dos religiosos e religiosas na América Latina. O projeto de Aparecida vai exigir uma mudança de mentalidade e uma mudança de comportamento. A missão será a prioridade e deixará no segundo plano a administração da pequena minoria que frequenta as paróquias. Os religiosos vão ter que voltar à sua vocação original, e deixar de ser administradores de paróquias ou de obras. Vão ter que voltar para o meio do povo e a partir do meio do povo iniciar com o povo o novo processo “mistagógico”. É necessário voltar ao contacto pessoal, ao encontro com Cristo e com os irmãos a partir de comunidades inseridas no meio do povo e a partir das CEB’S que nascem no meio dos pobres, pela acção do Espírito.
O quarto ponto importante é a acção dos missionários leigos. A Igreja latino-americana tem de continuar a sua opção pelos ministérios laicais e fomentar o aparecimento de missionários leigos no meio do povo de Deus. Essa consciência missionária existe. Há que incentivá-la e transformar a Igreja do continente numa Igreja ministerial e missionária.
Por último, o Pentecostalismo. Este movimento está em plena expansão em todos os continentes e também na América latina. Muitos católicos deixam a Igreja para integrar uma comunidade pentecostal. Os pastores são inumeráveis. Em vários lugares do mundo dos pobres, os pentecostais já são mais numerosos do que os católicos. Seria necessário analisar as razões desse êxito.
Contacto svd: O documento final reafirma a opção preferencial e evangelizadora pelos pobres. Pensas que esta idéia da Conferência de Medellín (Colômbia 1986) estava gasta, tinha caído em desuso ou andava silenciosa para agora se voltar a reafirmar?
José Cortes: A Igreja latino americana não esqueceu esta opção pelos pobres. Na verdade ela continua bem presente numa grande parte das acções evangelizadoras no continente. Tentaram foi silenciar a Teologia da Libertação, uma teologia com o rosto da América Latina.
Importaram-se novos movimentos e modismos. Incentivaram-se as comunidades ligadas ao Renovamento Carismático Católico, que seria o contraponto da Teologia da Libertação. Mas esta opção continuou e no documento ganhou uma nova amplitude. Quando se pensava que esta conferência iria sepultar definitivamente a “opção preferencial pelos pobres”, ela deu-lhe uma nova amplitude. Identificou, no dizer de Clódovis Boff, “novos rostos” da pobreza: os desempregados, os refugiados e migrantes, os doentes da Sida, os tóxico-dependentes, a população de rua, as mulheres vítimas da violência, os presos, os afro-descendentes...
O desafio que se coloca à Igreja é de como ela poderá ser para estas populações de excluídos, o rosto misericordioso de Deus, como diz Clodovis Boff, uma Igreja “agápica”, enquanto se faz samaritana de todos os caídos à beira das estradas do mundo, cuidando deles e curando-os.
Contacto svd: Quais são para ti os piores entraves à missão?
José Cortes: No momento os piores entraves à missão são as estruturas pesadas da Igreja, sobretudo as paróquias cheias de pequenos afazeres e “burocracias “, que nos ocupam todo o tempo a administrar coisas, quando devíamos estar no meio das pessoas. O clero é outro grande entrave à evangelização. Foi educado para ser padre dentro das Igrejas e sacristias, cumprir rituais e administrar os sacramentos e outros serviços a uma minoria que frequenta a Igreja. O clero diocesano e os religiosos foram educados, na sua maioria, para viver à sombra das estruturas e não estão preparados para uma nova forma de evangelizar que exige missão, isto é: ir ao encontro do outro, em pé de igualdade, com alegria e entusiasmo, levando a Boa Nova de Jesus Cristo, totalmente desarmados de certezas, verdades e preconceitos. Será necessário mudar radicalmente a formação do clero diocesano e nós, religiosos, voltarmos às origens da missão. A missão terá que ser a prioridade. No entanto, é sempre muito mais fácil chegar, abrigar-se à sombra de uma paróquia e burocratizar a evangelização...
Contacto svd: Quais são para ti as propostas fundamentais daquele que quer ser missionário?
José Cortes: O documento de Aparecida mostra muito bem o que é um missionário: um homem ou uma mulher, clérigo, leigo, consagrado ou consagrada, que tem uma fé viva em Jesus Vivo, Ressuscitado, Glorioso, a partir de um encontro pessoal com Ele, que transforma a pessoa em ouvinte da Palavra, e pertença de um povo de crentes, que se converte aos poucos em apóstolo da mesma Palavra e a vive num compromisso permanente para com a justiça e a vida. O missionário precisa aprender a estar presente no mundo de hoje, como um sinal de vida renovada, animada pela fé, esperança e caridade. O missionário deve estar atento às vozes do Espírito para descobrir caminhos novos e novos apelos que vêm do meio do povo. O problema é que a maioria das vezes a Igreja está surda ao Espírito.