A clonagem não tem interesse científico
Paula Martinho da Silva é uma mulher do Direito, mas com gosto pelas “áreas que fogem ao direito tradicional”. A ausência do direito sobre a reprodução medicamente assistida apaixonou-a pela bioética. Agora, foi nomeada Presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, do qual já fez parte em dois mandatos. A clonagem está, agora, na ordem do dia.
Agência Ecclesia - A clonagem será um grande dossier a abrir?
Paula Martinho da Silva - Penso que sim. Esta matéria está hoje numa fase de efervescência (apesar do Conselho Nacional de Ética ter já dado um parecer precisamente sobre a clonagem). Com a actualização científica desta questão é provável que seja solicitado um parecer.
AE – Em ordem à legislação sobre a clonagem.
PMS – Portugal já subscreveu e ratificou o protocolo do Conselho da Europa que proíbe a clonagem. É agora necessário prever as sanções penais para quem viole essas disposições.
Essa regulamentação será legislada e, provavelmente, outra (aí está a incógnita) uma vez que o protocolo apenas se refere à clonagem reprodutiva. Há toda uma área relativa à clonagem terapêutica e interligada com a investigação de embriões que poderá ser objecto de legislação. Eu penso até que a clonagem não é a questão mais importante sobre a qual deve ser legislada. É importante que exista um instrumento internacional que proíba a clonagem reprodutiva e comecemos a discutir as questões relacionadas com a clonagem dita terapêutica. Em Portugal, no entanto, um diploma sobre reprodução medicamente assistida e sobre a reprodução de embriões é, no meu ponto de vista, muito mais importante.
AE – Por que razão?
PMS – Em Portugal as técnicas de reprodução medicamente assistida já são praticadas há muito tempo e não estão regulamentadas, não estão previstas na lei. Não estou a dizer que existe má prática... Mas não sabemos que tipo de prática existe, não foram estabelecidos os limites: sabemos que existem embriões congelados e não há legislação que preveja a sua utilização.
AE – Poderemos encontrar aproximações sociais entre a revelação pública do primeiro bebé proveta, em 1978, e, agora, do primeiro clonado?
PMS – Existem dois factores que, por um lado assustam e, por outro, atraem.
Tudo o que é novo assusta um pouco. Assusta-nos o facto de estarmos a tocar na vida, a manipular algo que, pelo menos até ao nascimento do primeiro bebé proveta, era uma questão que não se colocava. O processo natural regulava a prática por si só. Assim, tudo o que seja alterar qualquer coisa relacionada com a concepção do ser humano assusta-nos sempre um pouco. Mas, por outro lado, tudo o que é progresso científico tem algo atraente: é novo, traz esperança e todas as questões relacionadas com as questões do ser humano (nomeadamente os transplantes), trazem-nos esperança em tratamento e cura, mesmo que isso depois não se concretize. Há sempre muita esperança em tudo o que a ciência nos traz de novo, bom e também com as suas consequências perversas.
A clonagem assusta-nos mais do que atrai. Ou seja, o facto de se falar que podem existir seres humanos idênticos fere com as sensibilidades. Não se trata de desejar ter um filho e não poder pelos meios naturais (que é o que se passa com a reprodução medicamente assistida), mas sim querer um filho e mais qualquer coisa: com determinadas características ou à semelhança de outro que já não existe... É uma objectivo que foge completamente do âmbito de uma reprodução medicamente assistida tradicional
AE – Assusta também a clonagem terapêutica?
PMS – A clonagem terapêutica assusta no sentido de que deixa uma porta aberta para a clonagem reprodutiva.
Temos de parar para pensar, para reflectir sobre os riscos e benefícios, sem rejeitar à partida como rejeitamos a clonagem reprodutiva.
AE – Com a clonagem, a força da vida, o género humano encontra-se de alguma forma ameaçado?
PMS – Eu não tenho a percepção que a clonagem reprodutiva seja uma prática do futuro. É uma prática que não é interessante...
AE – Não vale a pena colocar essa hipótese...
PMS – Temos que colocar as hipóteses porque elas são possíveis... Eu acho é que não pode ser colocada com uma grande angústia. Do ponto de vista científico é uma técnica que não tem interesse, caríssima e muito custosa. A taxa de êxito, relativamente aos animais, é de 1%. É muito difícil. Eu acho que o ser humano não tem interesse na clonagem reprodutiva, a não ser casos atípicos...
Eu não ponho o acento tónico no nosso futuro destruído pela ausência de seres únicos. Eu acho que vamos continuar a ser únicos e irrepetíveis, como fomos até aqui.