Entrevistas

A coerência do testemunho e a ousadia de proclamar a verdade

Voz Portucalense
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Entrevista de D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, ao jornal «Voz Portucalense»

Voz Portucalense – O Congresso Eucarístico, em Guadalajara, marca o início do Ano da Eucaristia, assim declarado pelo Santo Padre. Considera que este Congresso vá trazer novidades significativas de teor litúrgico-pastoral? D. José Policarpo – O objectivo de um Congresso Eucarístico não é decidir sobre aspectos concretos de carácter litúrgico-pastoral, mas contribuir para o aprofundamento da envolvência eucarística de toda a existência cristã. VP – Certamente que visita muitas Paróquias e celebra a Eucaristia com essas comunidades. Que análise faz de tudo o que vai vendo, desde o modo de preparar as Celebrações, como são vividas e participadas, até ao modo disciplinar. Como andam a estruturação e a dinâmica eucarísticas? D.JP – Na maior parte das paróquias do Patriarcado nota-se influência da escola litúrgica que o Seminário dos Olivais tem sido desde os tempos de Mons. Pereira dos Reis, que foi Reitor do Seminário. Nota-se, em geral, uma forte expressão comunitária na celebração da Eucaristia. A qualidade da celebração litúrgica depende do conjunto da formação da fé que a acção pastoral proporciona. A sua qualidade decide-se muito antes, na catequese e na formação em geral, do sentido geral da sacramentalidade como caminho de vida. Mas a formação litúrgica propriamente dita tem de ser um esforço contínuo, sobretudo dos intervenientes na acção litúrgica: os sacerdotes, cuja qualidade de presidência pode decidir da qualidade da celebração; a música que se canta e como se canta (a música apresenta-se, frequentemente, não como forma de oração, mas como factor de dispersão); os leitores, ponto fraco das nossas celebrações; a harmonia e a beleza dos espaços, das ornamentações e dos ritmos. Há um elemento decisivo, que nem sempre é trabalhado: o sentido da linguagem simbólica e a densidade expressiva dos símbolos. A moda de certos ofertórios, em que se inventam símbolos, é sinal preocupante. Os símbolos não significativos da densidade do mistério, são fruto da superficialidade e correm o risco de arrastar a acção litúrgica para a banalidade. VP – Quais foram os grandes resultados ou conclusões extraídas do Encontro da CCEE, realizado há dias, relativamente às posições cristãs face à Europa? Como vão cooperar entre si as diversas religiões, igrejas e instituições para erradicar o fundamentalismo e o terrorismo e aprofundar o Tratado Constitucional? D.JP – Não estive na última reunião da CCEE em Leeds, Inglaterra, mas as preocupações são conhecidas. Este Tratado Constitucional tem a lógica irreversível de uma União Económico-Política que para se manter, tem de afirmar progressivamente o peso da União sobre os Estados. Mas é frágil a dimensão cultural dessa União. Muito marcada pelo culto do indivíduo e da liberdade individual, tem a preocupação de se destacar daqueles elementos que marcaram decididamente a cultura europeia. O que permanece é um naturalismo horizontal, uma espécie de laicismo não afirmado, que se apresenta como a única matriz legítima da cultura europeia. As expressões mais graves desta orientação cultural, que aparecem eivadas de um “anti” influência da religião e das Igrejas na vida da sociedade, são: a destruição do conceito de família, concebida como comunidade de amor e de vida, assente na fecundidade do amor de um homem e de uma mulher; o desrespeito do carácter sagrado da vida humana, sobre a qual a sociedade pretende ter poder de vida ou de morte, sobretudo no seu início e no seu fim; o modelo de felicidade a proporcionar pelo desenvolvimento, materialista e marcado pelo consumismo. Até aqui as Igrejas apoiam o processo de União Europeia, porque se reconhecem nos grandes valores que a inspiraram: a construção da paz e da justiça, construída através da solidariedade e respeito mútuo pelos povos. Mas as Igrejas sabem que vão estar em confronto inevitável com aqueles sintomas que minam a dignidade das pessoas e o carácter transcendente da vida. O caminho a seguir é o da intervenção sincera e coerente no próprio processo de “mutação cultural”. As Igrejas não têm hoje outro poder que não seja a coerência do testemunho e a ousadia de proclamar a verdade. O diálogo ecuménico é importante para este situar-se positivo, embora crítico, das Igrejas no processo da União Europeia. Penso que o diálogo inter-religioso é, neste momento e para esse efeito, de pouca influência. Uma coisa é certa: na medida em que outras religiões, tais como o Islamismo, tiverem expressão significativa na União, a contestação desse horizontalismo cultural será, certamente, mais veemente, podendo tornar-se violento. A União Europeia só subsistirá se aprofundar uma nova cultura da unidade, que terá de enraizar na tradição cultural dos países que a integram. VP – Pode adiantar-nos já em que vai consistir o novo regulamento para a cedência dos templos para fins musicais e outros? D.JP – Não há nenhum novo regulamento em vista. Essa é mais uma “falsa questão” inventada não sei por quem. Considero que a linha que temos seguido é correcta, baseada nas normas feitas pela própria Santa Sé, e que procura conciliar desejos legítimos: o da Igreja de salvaguardar o carácter sagrado dos templos, não deixando deslizar a opinião pública para uma consideração apenas cultural do seu sentido e da sua utilização; mas também reconhecer o valor espiritual e pastoral da expressão artística, também ela linguagem do sagrado; o respeito pela comunidade que celebra a fé naquele templo. Isso supõe que cada iniciativa e cada programa precisam de ser avaliados e aprovados pela autoridade da Igreja, a única que conta, mesmo nos templos que, por serem monumentos nacionais, são propriedade do Estado, mas cuja gestão de uso é da estrita responsabilidade da Igreja. VP – Devido à actual crise instalada na Igreja de Lefebvre, separada de Roma por cisma, consta que vários dos seus padres admitem e pretendem reentrar na Igreja Católica? Primeiro, de que modo faz a leitura desta crise e, segundo, acha positivo e favorável o eventual diálogo com a Santa Sé? D.JP – Em qualquer atitude cismática, o principal caminho a percorrer é o da reconstrução da unidade e da comunhão. A Igreja é acolhedora para percorrer, com todos os que o desejarem, esse caminho da comunhão. As diferenças legítimas são apenas aquelas que não comprometem a unidade e possam caber no âmbito da grande pluralidade existente hoje na Igreja Católica. VP – Soube-se, por dados apresentados, que os pedidos de declaração de nulidade matrimonial têm aumentado bastante o que preocupa fortemente a Igreja. O que aconselha, para além de uma melhor preparação em vista ao matrimónio (namoro e noivado), de modo a que altere a situação? D.JP – A leviandade na celebração do matrimónio pode, de facto, aumentar o número de casamentos católicos feridos de nulidade. O pedido de análise e declaração dessa nulidade é, para os católicos, o único caminho para se poder celebrar um segundo casamento canónico. Compete aos nossos Tribunais Eclesiásticos analisar esses processos e é obrigação nossa apetrechá-los de modo a serem mais rápidos no proferir das sentenças, mas não caiamos na expectativa simplista de que todos os casamentos canónicos desfeitos podem ser declarados nulos. Isso constitui um problema pastoral difícil, pois os cristãos que, porventura por infidelidade, caíram nessa situação, continuam a ser filhos da Igreja. Na nossa última Carta Pastoral sobre a Família demos orientações sobre este problema. Mas como linha fundamental permanece a necessidade de uma mais séria preparação para o matrimónio. VP – “O Código da Vinci” era um livro, segundo os meios faziam constar, «muito/o mais esperado» e parece estar a ter grande procura e interesse. Para que ninguém se sinta enganado e iludido, ajude-nos por favor a abrir horizontes perante essa obra... D.JP – Trata-se de um romance policial. Sempre aceitámos uma certa liberdade da criação artística perante o fenómeno religioso. Mas tanto não, pois lança a confusão entre o que seria legítima fantasia artística e o que pretensamente se apresenta como fruto de investigação científica. Em geral, o autor alinha numa perspectiva bem conhecida: tirar ao cristianismo toda a densidade da fé e do mistério e transformar Cristo e o Evangelho num fenómeno natural, enquadrável nos parâmetros da natureza humana. A negação da divindade de Cristo, e a destruição da credibilidade da Igreja no seu mistério, não é a primeira vez que são tentados. Neste livro há de tudo: o bem urdido de um romance policial; a utilização do secretismo de certas sociedades secretas; banalidades, como referir o “Opus Dei” como o “mau da fita” ou referir a relação amorosa de Cristo com Madalena, várias vezes ousada pela arte; inexactidões pretensamente científicas, como situar os 4 Evangelhos como invenção de Constantino ou na maneira de referir os manuscritos de “Qum-ran”, ou a adulteração da lenda do Santo Graal. O desejo, confessado desde o início, de fazer do livro um hino à mulher, de valorização do “feminino” na vida e na história, não é conseguido, é mesmo banalizado. Em quem não tiver formação profunda, que lhe permita ser crítica, sobre os assuntos abordados, o livro poderá gerar confusões. Mas mesmo aí tem o valor que se lhe der. O debate que ele já suscitou, sobretudo na sua pátria de origem, poderá ser positivo. VP – Que acontecimentos eclesiais considera mais significativos e marcantes num passado recente e no presente, a que os Media não tenham dado o devido destaque e importância? D.JP – Respondo com um exemplo: uma notícia no Jornal “Correio da Manhã” sobre a presença de religiões não cristãs no Santuário de Fátima e pretensas reacções do Vaticano, que não existiram nem poderiam existir naqueles termos, foi assunto abundante em todos os noticiários. Por essa altura foi ratificado pela Assembleia da República, por uma vasta maioria, o novo texto concordatário, e isso não foi notícia. Entrevista conduzida por André Rubim Rangel, Voz Portucalense


D. José Policarpo