Entrevistas

A Concordata, segundo Sousa Franco

António Rego
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A Agência ECCLESIA recorda uma das últimas entrevistas do falecido político, um dos membros da Comissão que, em nome da Santa Sé, negociou o texto concordatário com a República Portuguesa

ECCLESIA – Como decorreram as negociações que levaram à assinatura desta Concordata? Sousa Franco – Foi realmente um trabalho de 4 anos, que correspondeu a exigências de tranquilidade e algum secretismo e diálogo, não só entre as duas comissões negociadores, mas também entre o Governo e a Santa Sé, com participação activa do presidente da CEP. Esses anos foram uma experiência muito gratificante, quer na fase em que o primeiro projecto foi elaborado pela comissão, quer na fase subsequente em que os contactos directos entre o Governo e a Santa Sé não dispensaram o recurso consultivo às comissões negociadoras. O meu juízo é que sempre houve um espírito de trabalho comum. A Concordata de 1940 foi um marco histórico, mas estava manifestamente desactualizada. Em 64 anos mudou muito o mundo, a Igreja, a sociedade portuguesa e, por isso, a necessidade de um Tratado internacional que estabelecesse as condições básicas de exercício da actividade da Igreja que é universal, num território português. A Constituição afirma a Liberdade Religiosa, há uma Lei de Liberdade Religiosa que não se aplica à Igreja Católica, regida pela Concordata de 1940. Esta tinha numerosas disposições inconstitucionais e outras de constitucionalidade duvidosa, pelo que o Tratado em vigor não servia e só enfraquecia a clareza das regras de convivência. Começou-se a pensar em rever a Concordata de 1940, mas rapidamente se percebeu a necessidade de fazer um novo texto, uma Concordata para o século XXI, que tem um sentido mais positivo, criando quadros de cooperação no âmbito de uma sociedade onde os princípios da separação, da laicidade e do pluralismo se mantêm. A ideia de uma nova Concordata impôs-se e hoje temos um documento que concretiza o princípio constitucional da Liberdade Religiosa no que se refere à Igreja Católica e às suas instituições. E – Quando é que se percebeu essa necessidade? SF – Desde as primeiras reuniões. O mandato partia da ideia de rever a antiga, mas pareceu claro para os dois lados que era necessário uma nova Concordata que não só resolvesse os problemas do século XX, mas lançasse as bases para um texto do século XXI. E – Quais foram as maiores dificuldades sentidas ao longo do processo? SF – Prefiro começar pelos pontos mais fáceis, que foram o princípio da cooperação, o qual não significa o esbatimento das diferenças, mas que a Igreja e o Estado visam servir o homem. Por outro lado, o princípio da Liberdade Religiosa. Há matérias onde o que se negociou era mais ou menos evidente, e o que se produziu é uma revisão à luz destes dois princípios com uma transposição quase automática, como no caso do regime do casamento – com excepção da revisão das sentenças que declaram a nulidade de casamentos canónicos por imposição do direito comunitário. Noutros casos houve necessidade de elaborar regimes novos, que são muitos, mas sublinho o do património cultural – campo privilegiado de cooperação. O problema da propriedade foi lançado pelas expropriações de 1911 e foi resolvido pela Concordata de 1940. O que acontece é haver muitos conflitos na gestão do Estado, que quer que o Património esteja bem inventariado, conservado, segurado, ao serviço da comunidade e, ao mesmo tempo, que a Igreja assegure que esse património exerce a sua função, que é servir a vocação religiosa da comunidade que o fez nascer. A falta de regulamentação vai ser resolvida com a criação de uma comissão mista permanente, para eliminar focos de conflito e criar pontes de cooperação. Há domínios em que não foi difícil encontrar as adaptações necessárias ao tempo: o domínio da assistência religiosa, da personalidades jurídicas eclesiásticas onde há uma aproximação do regime do registo que é estabelecido para as outras religiões na Lei da Liberdade Religiosa. É evidente que há matérias em que é mais difícil encontra soluções: o domínio da educação religiosa é um deles. Penso que ficou uma solução equilibrada, quanto à EMR porque a disciplina é obrigatória em termos curriculares, integra-se no sistema escolar e é livre, resultando da opção quer dos estudantes, quer das suas famílias. O que se clarifica é que os professores tem de ser acreditados e de confiança da Igreja e que o conteúdo dos programas é apenas desta. Depois temos a liberdade de formação de estabelecimento com reconhecimento de grau, que se aplica de maneira diferente da Concordata de 1940. Aplica-se o princípio de Liberdade de ensino a todos os graus e isso também se aplica à Universidade Católica. Para resolver eventuais dificuldades, criou-se uma solução que é original, mesmo no direito concordatário moderno. Cria-se uma comissão paritária, isto é, sempre que houver dúvidas sobre a aplicação da Concordata a Igreja e o Estado têm um órgão permanente com dois representantes de cada um, que fará propostas necessárias para a eliminação dessas dúvidas e analisará o que é necessário para a execução da Concordata, que vai implicar numerosos acordos. A ideia de que há acordos entre a Igreja e o Estado é também nova. Esses acordos podem ser internacionais, mas também podem ser de direito interno, ao abrigo da concordata e com uma natureza subordinada a esta. Apenas há diferenciação devido à natureza da Igreja Católica é diferente, devido à implantação histórica na sociedade portuguesa e devido aos regimes do direito canónico que têm de ser conjugados com o direito civil. O Tratado prevalece sobre a lie interna, mas tem o mesmo espírito e ambos obedecem à Constituição. E – Que leitura política faz deste acontecimento? SF – Esta é um Concordata de separação, que não cria dependências da Igreja relativamente ao Estado ou vice-versa, de cooperação, criando mecanismos para que ambos colaborem para o bem comum, e que não contém privilégios, não cria excepções de benefício para a Igreja Católica, adapta os princípios gerais da Lei da Liberdade Religiosa, do direito estatal e do direito canónico. Haverá sempre quem pergunte se é necessária uma Concordata. Há países onde a Liberdade Religiosa se efectiva bem sem a Concordata, como nos EUA, mas aqueles cuja tradição implica a existência de Tratados Internacionais, s são várias dezenas de países, só podem actualizar essa tradição e não destrui-la. Por outro lado, seria negativo que se criassem privilégios. Dou como exemplo o regime fiscal, que é uma aplicação à realidade das instituições da Igreja Católica do regime fiscal que consta da Lei da Liberdade Religiosa. Não há nenhum privilégio, não há nenhuma excepção, não há nenhum tratamento de favor e, por tudo isto, parece-me que a única leitura política possível é que a democracia portuguesa só tem ganho com a existência de paz religiosa, pluralismo, ao serviço da liberdade, percebendo que a religião faz parte do sentido da vida para muitos portugueses, cuja maioria merece tanto respeito como os outros, de uma ordem jurídica que é livre, é pluralista, dado que a Concordata não impõe nada a ninguém, mas faculta às instituições da Igreja Católica a liberdade que merecem e que é a dos cidadãos que nelas se revêem.


Concordata