A festa e os ritos do futebol Agência Ecclesia 06 de Julho de 2004, às 14:36 ... Fernando Micael Pereira, professor da UCP, conversa com a ECCLESIA sobre a festa que foi o Euro-2004 e aquilo que fica após o final da competição ECCLESIA – Como se explica todo o entusiasmo em torno do Eruo-2004 e da selecção portuguesa de futebol? Micael Pereira: Este movimento simbólico vale por si próprio, mas deverá ter consequências práticas na vida de todos os dias. E – Teve de ser a paixão do futebol a causar tudo isto... MP – Não sei se teria de ser o futebol, as certamente tinha de ser uma paixão: foi o futebol e isso não admira, porque o jogo é uma metáfora da sociedade e era uma dos vectores possÃveis para uma mobilização importante, que se tinha de fazer, e que neste caso nem era gratuita, pois tinha um objectivo imediato. E – As bandeiras que se viram nas janelas, nos automóveis e um pouco por todo o lado são decisivas para a afirmação de uma identidade nacional? MP – É positivo, em termos de alegria, e todos foram muito sensÃveis a este aspecto. Em Portugal, as coisas passam-se de forma mais contidas e desta vez houve um clima de festa que não tÃnhamos desde o tempo da aldeia. Há outro aspecto importante, que foi a importância de ultrapassar as diferenças, que temos algo que nos identifica e ao identificar nos agrega. Efectivamente, o futebol nem sempre serve para agregar, por causa da competição, e a vantagem do Euro é que esteve em causa um jogo entre paÃses, o que é de uma modernidade muito grande num momento em que a UE se alarga. Nesta interacção não havia inimigos, mas adversários que eram estes ou aqueles, e esta foi uma experiência de união e solidariedade que nos fez andar para a frente, sem “choradinhos†nem partidarismos. E – O nacionalismo é uma palavra a ter presente? MP – Em Portugal andamos há muitos anos a confundir patriotismo com nacionalismo: este é uma radicalização dos sentimentos patrióticos, que nos leva a esmagar tudo e todos à luz desta ideia. Não vi neste momento qualquer aspecto de nacionalismo, mas sim o amor da pátria, a identidade, a não-radicalização. E – Mesmo na afirmação da pátria estávamos atrás de outros paÃses? MP – Eu penso que sim, há uma desproporção nas manifestações externas portuguesas nestes domÃnios em relação a outros paÃses: andámos com um tesouro escondido, que não facilita o desenvolvimento de um patriotismo sadio. É de esperar que se mantenham manifestações e ritos, sem cair na banalização ou no abuso. E – Foi um brasileiro a estimular este instinto patriota... MP – Ele tinha de ser o porta-voz, porque não houve aqui um rito folclórico: o ritual tinha uma funcionalidade simbólico-psicológica, havia uma crença de que valia a pena apostar. A dimensão simbólica era mediada por algo de útil e julgo que Scolari soube fazê-lo, com simplicidade, mostrando a sua utilidade. Progressivamente, o futebol foi motor de outros fenómenos que o ultrapassaram, que tem a ver com o modo de vivermos com os outros. E – De que forma é que esteve presente no Euro-2004 o factor religião? MP – Ele esteve presente de muitas maneiras e muito explÃcitas: não se passou nada de verdadeiramente religioso, apesar de vários apelos e analogias com a religião. Começaria com a evidenciação das superstições que muitas pessoas vieram a público manifestar: acredita-se que o facto de eu fazer isto ou aquilo vai ser decisivo para algo que me ultrapassa, é a tentativa de agarrar forças externas. Este aspecto mágico-supersticioso foi evidente. Outra dimensão foi a das promessas, feitas por vários jogadores, de ir a Fátima, porventura. Um outro nÃvel mais calmo é o do pedido, das orações, que entra em diálogo com Deus, mais calmo, menos controlador. Há rituais usados nestes tempos análogos aos religiosos: os cortejos, as “procissões†de motards, com o “sagrado†à frente, devidamente enquadro; as “vigÃlias†de quem passou horas à frente da Academia do Sporting; as “confissões†dos jogadores na Televisão; as “vestes†dos participantes, com opas diferentes; o “ritual da pazâ€, com os jogadores abraçados durante o hino nacional. E – Quando o que é humano não chega para atingir o que se pretende, é normal recorrer ao Transcendente? MP – É claro que o humano não chega: temos de saltar, ir ao encontro de alguém que está acima de nós. E – O que fica do Euro-2004? MP – Ficam coisas muito importantes: a acção dramática, que nos marca no domÃnio do simbólico, que espero venha a confirmar sementes de aspectos importantes da nossa vida. A experiência de comunhão resultou muito bem, a percepção de que a competição caminha para a cooperação e não para a luta de morte também foi muito importante. Isso pode-nos ter marcado, deu-nos a ver o que somos capazes de fazer em alegria e cooperação. Euro 2004 Share on Facebook Share on Twitter Share on Google+ ...