Entrevistas

A humanidade do Papa

Agência Ecclesia
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Avaliação de D. Manuel Clemente, especialista em História da Igreja, aos 25 anos de Pontificado de João Paulo II

Agência ECCLESIA – Até que ponto estes 25 anos são fruto da história pessoal de Karol Wojtyla? D. Manuel Clemente – Não há dúvidas de que a história pessoal está ligada à história do Pontificado e julgo mesmo que uma das razões da popularidade de João Paulo II é a sua humanidade. Sente-se que, num mundo em que as pessoas nem sempre são o que pareciam e os ídolos tanto se erguem como se abatem, a figura deste Papa manifesta consistência, em termos de humanidade. AE – Como se pode ver a acção do Espírito Santo neste Pontificado? MC – Nós só podemos ver uma certa coincidência entre os caminhos de Jesus e os do homem, mas é pelos frutos que se conhecem as árvores. É muito importante ver em alguém que viveu os momentos centrais da história actual, como se nele se pudesse ler a história do próprio mundo. Ao lermos da vida de Karol Wojtyla/João Paulo II, vemos que nasce em 1920 num Polónia que é dilacerada por jogos políticos, herdeiro de uma cultura com referencias ocidentais e orientais, com muita dedicação à literatura, teatro, poesia, cheio de amigos judeus que sofrem na II Guerra Mundial. Com a ocupação nazi tem de ir trabalhar para uma mina, condenado a trabalhos forçados e é nesta altura que ele percebe uma coisa fundamental: a humanidade só poderia ser vivida de uma maneira trágica, com a entrega da própria vida e aí encontra a figura de Jesus como referência máxima. Por isso posso dizer que a chave deste pontificado está no nº 22 da constituição “Gaudium et Spes” do Concílio Vaticano II: “o mistério do homem só se esclarece à luz do mistério do Verbo Incarnado”. AE – Assim se entende melhor que o Papa peça para abrir as portas a Cristo? MC – Claro, sobretudo quando ele as abriu de tal forma. Quando se trata de abrir essas portas a sociedade não pode ter medo, o Evangelho tem um contributo muito positivo e isso para João Paulo II é óbvio. Desde o início esse é o pedido: abri as portas a Cristo, não tenhais medo. Foi precisamente pela referência a Jesus e à Igreja que Wojtyla e o seu povo perderam o medo, numa sociedade sufocada pela ausência de referência religiosa: Jesus Cristo é o princípio de libertação do cristão. AE – Que rumos levou o Pontificado? MC – O Papa traz para o centro da cristandade a sua experiência de resistente a partir da referência evangélica. Na sua primeira viagem à Polónia abriu uma comporta de liberdade a partir dessa mesma referência, no que acabou por ser um factor decisivo no desmantelamento do império de Leste. AE – Mas não chegou nem à Rússia nem à China? MC – A pouco e pouco, isto é como as ondas concêntricas nos lagos que se vão alargando. As ondas neste Pontificado existem em todos aqueles em quem o Papa tocou pela clareza da sua mensagem. Veremos que as consequências do Pontificado vão além do protagonismo do Papa. AE – Na América houve uma luta contra a teologia da libertação? MC- -Não posso dizer que houve essa luta, nos anos 70 e 80 houve mesmo euforia nos seus imediatos colaboradores em relação a esta. O problema nunca foi a libertação nem o progressismo, o problema é que João Paulo II conhecia da sua experiência na Polónia o que poderia ser a redução ideológica de qualquer doutrina: a fraternidade universal não poderia esquecer qualquer referência religiosa. Quando o Papa constata que uma determinada corrente teológica corria o risco de reduzir ideologicamente uma luta justa, com consequências perigosas para a própria Igreja por confinar-se a dimensões materiais. AE – A outra luta foi para a libertação do Consumismo? MC – Basicamente e pelos mesmos motivos. Não se pode ter uma visão materialista como a do consumismo que faz coincidir a felicidade da pessoa com o número de objectos que se consigam obter. O problema é que a dimensão da pessoa é reduzida, esquecendo aquilo que podemos ser à luz de Jesus, e qualquer redução é inaceitável. AE – Como conjugou o Papa o verbo viajar nestes 25 anos? MC – O Papa entende que o seu papel, central no mundo cristão católico é central onde quer que os católicos estejam e entendeu que devia – ele que até 1978 esteve quase sempre confinado à Polónia – que devia chegar onde quer que haja fronteiras do cristianismo a abrir. AE – E o verbo escrever? MC – Nos documentos do Papa há dois condutores: a centralidade de Jesus Cristo e a “lei da oferta”, ou seja, que nos compreendemos quando nos damos aos outros. Estas duas vivências estruturais no seu discurso significam que Jesus é a realização do homem e que a vida é um dom, escapando a um sentido materialista ou consumista da vida. AE – É por isso que ele continua a animar a vida da Igreja Católica? MC – Sim, exactamente pela densidade com que vive estas verdades. AE – Foi um Pontificado de diálogo? MC – Foi e bem, porque dialogar não significa estarmos todos imediatamente de acordo. O diálogo é cada um entender-se, nas suas convicções, e ganhar alguma coisa com o outro. João Paulo II tem exercitado o diálogo, como nunca ninguém o fez no âmbito inter-religioso: nesse sentido teve atitudes inéditas na vida da Igreja e na história religiosa da humanidade. A tal ponto que criou resistências, causou confusão a algumas pessoas aquilo que aconteceu a 27 de Outubro de 1986: chefes de tantas confissões religiosas a juntarem-se como cada um sabe rezar pela paz nunca tinha acontecido. AE – O Papa é um homem de oração? MC – Para um cristão rezar é ter com Deus o diálogo que Jesus tem com aquele que chama Pai. Nesse sentido, o cristianismo é um eco desse diálogo interior e é claro para quem se aproxima de João Paulo II que tudo aquilo que diz vem de dentro. AE – Há algumas arestas onde a análise a este Pontificado costuma ser negativa, questões que são absolutizadas? MC – Há dois princípios que se devem dizer a respeito da família e do planeamento familiar: o matrimónio, para a Igreja, é criado para a fecundidade. Toda a tradição católica pede cautelas em relação aos equilíbrios naturais em relação à pessoa e o Papa não vai na onda, porque a tecnologia não pode substituir-se à vontade do homem e da mulher.


João Paulo II - 25 Anos