As religiões do Antigo Testamento
Autoridade mundial na matéria, Francolino Gonçalves, português na Comissão Bíblica Pontifícia, apresenta o seu percurso
Agência ECCLESIA (AE) – Recentemente, foi nomeado para a Comissão Bíblica Pontifícia. É o reconhecimento do seu trabalho nesta área?
Francolino Gonçalves (FG) – Não esperava e fiquei surpreendido. Sei que esta comissão tem 20 elementos e que existe desde 30 de Outubro de 1902. Surgiu no final do Pontificado de Leão XIII e tinha como função primitiva a promoção do estudo científico da Bíblia. No contexto de então, este era sinónimo de estudo histórico-crítico. Por outro lado, tinha também a função de defender a ortodoxia católica do estudo da Bíblia.
Um ano após a criação desta comissão, em 1903, começa o Pontificado de Pio X e «estala» a crise modernista. A Comissão Bíblica tornou-se só defensora da ortodoxia.
AE – Esqueceu-se da promoção do estudo científico da Bíblia?
FG – A crise modernista era grave e, muitos, viam-na como um perigo para a sobrevivência da fé cristã. Em todo o Pontificado de Pio X, a Comissão foi um órgão de censura. Recordo-me de algumas respostas que foram dadas pela Comissão. Em relação à autoria do Pentateuco (cinco primeiros livros da Bíblia) afirmaram: «Não se pode negar que Moisés tenha sido o autor de todo o Pentateuco». Sobre o Livro de Isaías, a Comissão dizia que “não se pode negar que este livro tenha sido escrito na sua totalidade por Isaías”.
AE – Quando se alterou esta situação?
FG – Mudou, radicalmente, após o II Concílio do Vaticano. Actualmente, pelo que sei de fora, a Comissão tornou-se uma espécie de academia que se dedica a estudos de fundo com grandes preocupações metodológicas. Já publicou vários trabalhos desse tipo. Um dos mais importantes foi «A Interpretação da Bíblia na Igreja». Nesta obra faz-se uma espécie de elenco de todos os métodos utilizados na leitura da Bíblia. Na década de 70 do século passado assistimos a uma proliferação dos métodos e abordagens.
AE – Essa é uma obra de referência, mas a Comissão Bíblica tem outros estudos?
FG – Sim. «O Povo Judeu e as suas santas Escrituras na Bíblia cristã» publicado em 2004. Passados quatro anos (2008) saiu «Bíblia e Moral, as raízes bíblicas do agir cristão». O novo projecto será sobre a «Inspiração e verdade da Bíblia»
AE – Este projecto já contará com a sua colaboração?
FG – É verdade. Na próxima assembleia plenária da Comissão, a realizar de 20 a 24 de Abril, no Vaticano, iremos lançar e repartir o trabalho. Depois partimos para a investigação.
AE – É professor na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. Como é o seu «modus vivendi» naquela cidade?
FG – Vivo lá enclaustrado. A minha vida é: quarto e biblioteca. Praticamente, não necessito de sair. Outrora saía mais, quando estava ocupado com as viagens arqueológicas da escola. No entanto sei que, do ponto de vista da segurança física, não há problema nenhum. Fisicamente, nunca tive medo, mas sente-se tensão.
Uma vida de estudo
AE – Consideram-no o maior perito mundial sobre o Profeta Isaías. Reconhece-se nesse lugar?
FG – Eu não diria. Há muita gente a estudar Isaías e cada um estuda-o do seu ponto de vista. Penso que não se pode dizer que há o maior perito no livro de Isaías. Não há rankings. Cada um tem a sua experiência e abordagem do livro.
AE – Como descobriu este fascínio pela Bíblia, pela investigação do Livro dos livros?
FG – Em parte, deve-se às influências que se têm durante o estudo. Recordo-me que tive – em Portugal – um professor extraordinário, frei Raimundo de Oliveira. Tinha uma capacidade de comunicação absolutamente excepcional. Sabia muito, mas sabia ensinar ainda melhor.
AE – Era um grande pedagogo...
FG – Tinha paixão naquilo que fazia. Esse entusiasmo era contagioso. Penso que lhe devo, em parte, este interesse pela Bíblia. Tudo isto aconteceu nos primeiros anos de Teologia, em Fátima, no início da década de sessenta. Depois, manifestei o desejo de aprofundar estas áreas.
AE – Onde estudou?
FG – Primeiro em Portugal, depois estive três anos no Canadá (Otawa). Para a especialização tinha duas hipóteses: Instituto Bíblico de Roma ou a Escola Bíblica e Arqueológica Francesa em Jerusalém. Optei por Jerusalém. Na Ordem dos Dominicanos era costume irmos estudar para lá onde passávamos, pelo menos, dois anos. Durante este período preparávamos títulos próprios da escola e os títulos para a Comissão Bíblica Pontifícia. Segui o itinerário que era habitual dentro dos Dominicanos. Depois fiz o doutoramento em História e Filologia Orientais, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Católica de Lovaina, em Lovaina-a-Nova. Com base na mesma tese, obtive o grau de Doutor em História Antiga na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
AE – Foi para Jerusalém por dois anos e ainda se mantém por lá?
FG – Fui para Jerusalém em Outubro de 1969. Após o primeiro ano obtive uma Bolsa da Gulbenkian e continuei os estudos. Fiquei até Janeiro de 1974. Apesar de ter sido convidado para leccionar em Jerusalém voltei para Portugal. Pensava ficar por cá, onde ensinei durante um semestre. Ao fim deste tempo cheguei à conclusão que me agradava mais lá.
AE – A cidade de Jerusalém tinha mais fascínio. Tinha oportunidade de conjugar a biblioteca com a pesquisa no terreno?
FG – Exacto. Em Setembro de 1974 voltei para Jerusalém e convidaram-me novamente para leccionar. Aceitei, mas pensava sempre num horizonte curto.
AE – Já passaram 40 anos... Muitas experiências para relatar?
FG – É um mundo tão complicado. No início é fascinante pela diversidade de mundos. Jerusalém é um aglomerado de microcosmos. No entanto, depressa me encerrei nos meus estudos visto que estava muito interessado nas descobertas no terreno. Participações em escavações arqueológicas. Sem esquecer o trabalho de biblioteca. Enveredei, muito cedo, pela interpretação dos textos.
AE – Nas investigações arqueológicas nunca descobriu um manuscrito dos tempos bíblicos?
FG – Isso nunca me aconteceu. São coisas que acontecem muito raramente. Talvez uma vez num século. Não existem muitas probabilidades de nos acontecer. Mas tive contacto directo com pessoas que descobriram alguns dos manuscritos de Qumrân. Tive como professor o Pe. Roland de Vaux, arqueólogo que escavou as ruínas de Qumrân. Estas descobertas vieram revolucionar os estudos bíblicos.
Pluralidade de religiões
AE – Natural de Trás-os-Montes, mas um viajante na descoberta de novas civilizações.
FG – As coisas foram surgindo naturalmente. Recordo-me que quando cheguei a Jerusalém – 1969 – levava uma ideia para investigar: a história da Salvação. Este tema dominava os estudos bíblicos daquele tempo. Pensava para mim: O que é isso de «Salvação»?
AE – Já descobriu o que «é isso de salvação»?
FG – (Risos). Não. Ainda ando à procura.
AE – Depois de tantos anos de investigação?
FG – Quando cheguei a Jerusalém, Pe. Roland de Vaux disse-me: “O melhor é começar por coisas muito modestas. Tu vais fazer um estudo filológico”. Escolhi dois grupos lexicais hebraicos que expressam a ideia de salvação. Andei um ano à volta desta temática. Durante esta pesquisa apercebi-me que havia uma grande concentração deste vocabulário em dois textos: 2º Livro dos Reis 18-20 e Isaías 36-39. Aliás, é o mesmo tempo com pequenas variantes.
No ano seguinte, comecei a estudar estes relatos. Há um episódio extremamente importante: a ameaça que o Rei da Assíria, Senaquerib, faz pesar sobre Jerusalém. Apercebi-me que havia neste relato uma história com vários séculos de escrita. Reinterpretações diferentes em momentos diferentes. Consegui fazer uma espécie de história da interpretação de um acontecimento histórico.
AE – Esqueceu-se do «História da Salvação»?
FG – Não esqueci, mas para a tese de doutoramento centrei-me no tema - poderia ser de relações internacionais ou política internacional -: «A expedição de Senaquerib na Palestina na literatura hebraica antiga».
AE – Este relato foi uma porta de entrada para o Profeta Isaías?
FG – Passei estes 40 anos a estudar os profetas. Nos últimos 10/15 anos voltei indirectamente à «História da Salvação», mas por outro caminho completamente diferente. Apercebi-me – já andava desconfiado – que o Antigo Testamento está longe de ser uma unidade do ponto de vista religioso. Não há só uma religião no Antigo Testamento.
AE – Está investigar esta pluralidade de religiões no Antigo Testamento (AT). Já chegou a alguma conclusão?
FG – Sim. Penso que o AT é o compromisso entre dois sistemas religiosos. Um destes sistemas – o mais fundamental – toda a religião se funda na Criação. Mais precisamente, no mito da criação. Esta religião tem a sua imagem de Deus que aparece, essencialmente, como Rei. O texto mais claro e que melhor ilustra esta concepção de Deus é a visão inaugural de Isaías (Capítulo 6). Este profeta vê uma sala real onde está o rei sentado no trono - com umas vestes que se estendem por toda a sala – e rodeado pelos seus cortesãos.
Deus é o rei que conquistou a realeza. Como é que Ele se tornou rei? Há diferentes versões, mas a mais corrente é: tornou-se rei pela vitória contra o caos. O combate cósmico primitivo. Este é um esquema comum ao mundo semita.
AE – É uma antevisão do Novo Testamento?
FG – Alguns conceitos fundamentais do Novo Testamento (NT) partem daqui. E exemplifico: o conceito de Reino de Deus; o conceito de Messianismo e o conceito de justiça e justificação lidos em S. Paulo. Não podemos esquecer que justiça é sinónimo de ordem. Para S. Paulo é a harmonia da criação na sua relação com o Deus, o Criador.
AE – Então através da leitura do cosmos as pessoas visualizam a criação.
FG – Todos têm acesso ao conhecimento de Deus através da criação. Este sistema religioso não tem lei, não conhece a lei positiva, mas a lei natural. Através da leitura do cosmos e da sociedade, as pessoas observam comportamentos com resultados felizes e infelizes, e a partir dessa observação, induzem normas de conduta.
AE – Falta o outro sistema religioso?
FG – O outro funda-se na história das relações entre um Deus e o seu povo. Entre Israel e Yahve. A primeira grande testemunha deste sistema religioso é Oseias. Qual é a imagem que Oseias dá de Deus? As metáforas que emprega têm origem familiar. Yahve é pai e o povo é o filho. Yahve é esposo, o povo é a esposa. Estas metáforas sublinham a autoridade de Deus e o culto exclusivo a Ele. Um pai pode ter muitos filhos, mas os filhos só têm um pai. Na sociedade de então, um homem podia ter muitas de esposas, mas elas só podiam ter um marido. A metáfora mais frequente é a do marido. Mais tarde, usou-se sobretudo a metáfora da aliança, oriunda do mundo das relações entre dois reis de poder desigual, o suzerano e o vassalo. Neste sistema religioso, Deus revela-se na história e a um grupo. Este sistema religioso foi mais dinâmico e conquistador. Acabou por ir absorvendo o outro sistema.
AE – Pelas suas palavras, nota-se um fascínio pelo Antigo Testamento.
FG – Quando estudo o AT, exploro os fundamentos do Novo Testamento. O estudo do AT é tão complexo e difícil que é impossível tentar estudar, seriamente, os dois. Mesmo dentro do Antigo Testamento temos especializações.
Jerusalém
AE – Na sua cidade adoptiva (Jerusalém), como é vivida a Quaresma?
FG – É preciso pensar que em Jerusalém, os cristãos são uma minoria ínfima. De um lado há o mundo judeu e no outro o mundo muçulmano. Os cristãos são uma minoria e, ainda por cima, estão divididos. Nem sequer celebram a Quaresma ao mesmo tempo porque os calendários são diferentes. Não há um fenómeno de conjunto sobre a Quaresma.
AE – Não tem um «sabor especial» viver a Quaresma e Páscoa em Jerusalém?
FG – Terá para quem vai de fora. Para quem vive lá... Passar a Páscoa lá ou noutro lado qualquer para mim é indiferente. Jerusalém é um lugar familiar, mas não posso dizer que tenha um grande apego à cidade.
AE – O simbolismo da Via-Sacra é diferente...
FG – Sim, mas sabemos que a escolha desse itinerário é artificial. No entanto, continuo a dizer que Deus não está ligado a nenhuma terra, seja ela qual for.
Sagrada Escritura