Entrevistas

Conferências vicentinas contra a crise e o isolamento

Luís Filipe Santos
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Natural de uma aldeia do concelho de Penamacor (distrito de Castelo Branco) António Correia Saraiva é presidente da Sociedade de S. Vicente de Paulo (SSVP) desde Abril 2010. À Agência ECCLESIA, fala das dificuldades que a crise coloca e da resposta que os vicentinos oferecem, um pouco por todo o país

Depois de vir da Guerra do Ultramar, António Correia Saraiva começou a namorar com a actual esposa, mas o sogro (86 anos) – “é o vicentino mais antigo de Portugal” – aliciou-o para as tarefas humanitárias. “Vou ao Lameirão (perto da Covilhã) visitar um pobre não queres vir comigo?”. Foi o princípio… “Comecei a ter o «bichinho» de ajudar as pessoas e nunca mais saí dos vicentinos” – disse à Agência ECCLESIA.

Natural de uma aldeia do concelho de Penamacor (distrito de Castelo Branco) António Correia Saraiva é presidente da Sociedade de S. Vicente de Paulo (SSVP) desde Abril 2010. Vive na Covilhã há muitos anos e teve um percurso laboral na actividade bancária. Actualmente está aposentado – tem 65 anos – e “quatro décadas de vicentino”.

As suas tarefas directivas na SSVP «obrigam-no» a deslocar-se a Lisboa com frequência, mas continua na Conferência Vicentina de S. Pedro, na Covilhã. Casado e pai de dois filhos, António Correia Saraiva confessou também que a esposa pertence aos vicentinos, mas os filhos não. “Mas acompanharam-me muitas vezes enquanto foram solteiros” – disse.

 

 

Agência ECCLESIA (AE) – Qual a identidade específica do vicentino (membro da Sociedade de S. Vicente de Paulo)?

António Correia Saraiva (ACS) – Não existe uma identidade específica, mas boa vontade para ajudar o próximo. No entanto, um vicentino deve ter algumas características que o distinguem dos outros voluntários. O nosso lema é a visita domiciliária aos pobres e testemunhar a fé em obras.

É fundamental ter algum tempo, mas na nossa vida temos sempre tempo para tudo. Embora, algumas vezes dizemos que não. Temos que estabelecer prioridades. É preferível estar duas horas no café ou ajudar um vizinho carenciado? É preferível fazer «coisas» em prol dos outros.

 

AE – Numa sociedade individualista como a actual, os vicentinos lutam contra a corrente?

ACS – As pessoas ligam mais ao «ter» do que ao «ser», mas temos de nos consciencializar de um facto: quando as pessoas são sensibilizadas para essas realidades – existem muitos exemplos disso – elas ajudam. Começam a pensar no «ser» e colocam de lado o «ter».

 

AE – Evangelizam através da «ajuda» aos mais necessitados?

ACS – Quando estamos no terreno, notamos que o pobre tem necessidades materiais e espirituais. Muitas vezes, as necessidades materiais não são as maiores. Se conseguirmos resolver as necessidades espirituais/psicológicas é meio caminho andado para o pobre se levantar e retomar a sua vida.

Se colocarmos apenas géneros materiais, o pobre nunca mais se levanta. Entra naquele vício de – todos os meses ou semanas – lhe levarem a alimentação e o ajudarem a pagar as contas.

 

AE – Como chegam aos desprotegidos? Informações da comunidade ou descoberta dos vicentinos?

ACS – A Sociedade de S. Vicente de Paulo trabalha integrada em paróquias. Todas as conferências vicentinas têm uma ligação com a paróquia. O pároco e outros cristãos relatam-nos situações e, noutros casos, como estamos no terreno constatamos outros casos.

 

AE – E nos tempos que correm, o número tem crescido.

ACS – Estamos envolvidos numa crise profunda. No último mês de Dezembro fizeram-se campanhas para o Fundo Social Solidário e para outras instituições, mas notámos que as pessoas responderam afirmativamente. Apesar da crise, o povo português tem uma «alma boa» e é solidário.

A Sociedade S. Vicente de Paulo deve ser a maior organização a trabalhar no terreno ligada à Igreja. Temos - em números aproximados – mais de 900 conferências vicentinas que correspondem a 12500 vicentinos.

 

AE – De várias faixas etárias?

ACD – Outrora havia distinção (jovens, masculinas e femininas), mas actualmente as conferências vicentinas congregam pessoas dos dois sexos e de várias idades. No entanto, damos uma atenção especial aos jovens porque estamos muito carenciados deles. Um dos nossos objectivos passa pelo cativar a juventude para as conferências porque algumas estão a ficar envelhecidas, mas também reconhecemos que a vida é muito acelerada e para os jovens muito mais.

 

AE – Mas para se ser vicentino é necessária determinada formação.

ACS – Há um período de formação (dura cerca de um ano) até se fazer o compromisso. Os «novos» vicentinos trabalham nas conferências com os mais experientes e absorvem os princípios da Sociedade de S. Vicente de Paulo. É essencial adquirir alguns conhecimentos do cristianismo e saber lidar com os carenciados. O vicentino não se pode esquecer que o carenciado é um ser humano e tem a sua dignidade própria.

Nesse período de estágio, as pessoas ficam ou não ficam sensibilizadas para esta ajuda aos mais carenciados.

 

AE – Qual a forma que utilizam para angariar as verbas e alimentos que distribuem? Tem ligações a empresas?

ACS – Temos poucas ligações com empresas. Essencialmente, os vicentinos vivem das dádivas das pessoas em cada paróquia. Como reunimos – por norma – todas as semanas para dialogar sobre os novos casos fazemos uma colecta para a conferência. Quando fazemos apelos nas missas dominicais aparece de imediato o bem solicitado. Tanto pode ser um frigorífico como uma cama.

 

AE – Trabalham no silêncio e sem os holofotes da fama?

ACS – Sempre no silêncio… Aliás, o Evangelho diz: “Dar com a mão esquerda sem que a direita saiba”. Temos também outra regra: tudo o que se fala nas reuniões das conferências fica ali dentro. Ninguém sabe cá fora se nós ajudamos A, B ou C. Não temos (vicentinos) de estar a expor as pessoas e as suas necessidades.

 

AE – Ao longo destes anos todos já realizaram «operações de sucesso»? A passagem de carenciado para vicentino?

ACS – Temos muitos «casos» de sucesso. Esse é o objectivo final do nosso trabalho e quando isso acontece alegra-nos muito. Queremos que as pessoas saiam do estado de pobreza onde se encontram, mas nem sempre o conseguimos porque a sociedade está muito desestruturada. Há pessoas que nasceram pobres e julgam que têm de viver nessa situação toda a vida. Temos mentalidades dessas…

 

AE – Nesses casos é fundamental a motivação?

ACS – Motivar é a palavra de ordem. Na conferência onde estou - S. Pedro, na Covilhã - temos uma miúda - mãe solteira – que ajudamos. Como o bebé está com sete meses estamos a tratar da papelada junto do Centro de Emprego para que a mãe comece a trabalhar. Ela não pode ficar em casa eternamente à espera que a ajudem a ela e ao bebé. Não podemos permitir que as pessoas com saúde e válidas permaneçam inactivas. Isso é o pior que pode suceder a uma pessoa.

 

AE – Mas a crise laboral não ajuda nada?

ACS – É verdade. Hoje para se arranjar um emprego… Há 15 anos atrás era mais fácil.

 

AE – Quando o emprego escasseia, o Fundo Social Solidário (FSS) é uma ajuda fulcral?

ACS – O FSS tem sido uma grande ajuda. Temos (juntamente com a Cáritas e a Comissão Justiça e paz) em todas as dioceses uma comissão local de acompanhamento que analisa os casos e envia para a comissão central, em Lisboa.

 

AE – Qual a diocese que está a pedir mais apoios?

ACS – Nos primeiros meses, a diocese que pediu mais apoios foi a de Vila Real, mas existem bolsas de pobreza por todo o país. A zona metropolitana do Porto também está muito fragilizada.

 

AE – Já assistiu a casos arrepiantes?

ACS – Muitos, ainda na semana passada levámos (vicentinos) uma cama, mesa, cadeiras e roupa para uma família. É um casal jovem que comia com o prato na mão. Essas cinco pessoas tinham apenas dois copos e dormiam no chão. A casa estava despida completamente. Tinha literalmente zero.

 

AE – Esse foi um caso descoberto, mas existe também muita pobreza envergonhada?

ACS – Esse é o grande problema actual. Basta um elemento do casal perder o emprego e a estabilidade da família «vai-se». No entanto, apelamos às pessoas para se dirigirem à paróquia. Nós mantemos o anonimato dessas pessoas… Muitos casos que nos param nas mãos já estão mesmo no fundo. Com os cortes sociais que o Governo implementou a pessoas estão a entrar num beco sem saída.

 

AE – A publicidade também não ajuda.

ACS – A televisão dá-nos uma ideia de facilidade que não existe. A publicidade é enganosa e, do ponto de vista psicológico, as pessoas são fracas e cavam cada vez mais buracos. Ficam em situações verdadeiramente aflitivas.

 

AE – Apesar de vivermos numa sociedade global onde tudo comunica com tudo, a solidão é também um drama bem evidente.

ACS – Ninguém imagina o número de pessoas que vivem na solidão. É uma coisa terrível. Temos vicentinos que passam as horas que têm disponíveis a visitar pessoas só para falar com elas. Há pessoas que passam dias e dia sem falar com ninguém.

 

AE – O que fazer para alterar este panorama?

ACS – É fundamental que as instituições ligadas à Igreja dêem as mãos e denunciem estes casos junto das entidades oficiais. As pessoas estão nos gabinetes e não têm consciência do que se passa em muitos lares portugueses. Por outro lado, temos de consciencializar as pessoas que têm determinados direitos, mas como não sabem não os reivindicam.

 

AE – Se S. Vicente de Paulo voltasse à terra ficava escandalizado?

ACS – Ficava pasmado, mas com a força dele continuaria a fazer o trabalho como fez. Lutando contra tudo e contra todos.

LFS



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