Entrevistas

«Diálogo, abertura, presença e proximidade»

Agência Ecclesia
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D. António Francisco Santos -  LFS/Agência ECCLESIA
D. António Francisco Santos - LFS/Agência ECCLESIA

A Agência ECCLESIA transcreve a última entrevista concedida por D. António Francisco dos Santos, falecido bispo do Porto

A Agência ECCLESIA transcreve a última entrevista concedida por D. António Francisco dos Santos, falecido bispo do Porto, concedida durante a peregrinação diocesana ao Santuário de Fátima, a 9 de setembro. Uma conversa sobre temas sociais, a família, o trabalho, a vida da diocese e o poder local que fica como um testemunho do percurso e do pensamento do prelado.

Agência ECCLESIA (AE) – A Diocese do Porto peregrinou ao Santuário de Fátima. Um momento significativo no centenário das aparições da Cova da Iria e um início de uma tradição?

D. António Francisco Santos (AFS) – É a segunda vez que a Diocese do Porto faz uma peregrinação diocesana ao Santuário de Fátima. A primeira ocorreu em 1968, e este ano, depois da bênção que constituiu a visita da imagem peregrina a toda a diocese. Depois de ver a afluência o entusiasmo, o encanto e a alegria que todos os diocesanos/as, nós sentimos que devíamos vir agradecer essa visita. Sentimos que devíamos vir celebrar também aqui, no Santuário de Fátima, o dia da dedicação da nossa catedral. Abrindo assim um espaço novo fora de portas e para lá de fronteiras nesta dedicação Igreja da catedral e do início do ano pastoral.

A Diocese veio agradecer a visita da Virgem Peregrina, vimos celebrar o centenário e vimos iniciar uma nova etapa do caminho pastoral da diocese que queremos que seja sempre abençoada por Nossa Senhora que teve sempre presente no percurso da Igreja. Não sejamos nós, a cidade da Virgem, dedicada a Nossa Senhora de Vandoma, e uma diocese que tem como padroeira Nossa Senhora da Assunção.

A afluência e o encanto destes mais de 30 mil diocesanos do Porto e mais de duzentos sacerdotes e a presença de todas as 477 paróquias e da 22 vigararias e de muitos movimentos apostólicos. Uma grande moldura humano onde víamos jovens, crianças, idosos e famílias. Estiveram mais de 300 doentes e frágeis e uma presença muito significativa de 50 pessoas sem-abrigo da cidade do Porto para que também aqui Nossa Senhora nos inspire a irmos a todas as periferias e abrirmos caminhos novos de renovação pastoral.

AE – Para quando a próxima peregrinação diocesana ao Santuário de Fátima?

AFS – Agora vamos fazer a avaliação desta bela iniciativa. Depois, penso que este espírito que nos envolveu e mobilizou a todos vai continuar com novas iniciativas. Nós temos muito o sentido da criatividade da ação pastoral. Não é a repetição pela repetição. Temos de fazer sempre as coisas com sentido, com horizonte, com objetivos e com metas. Daqui podemos levar mais vigor, entusiasmo e dinamismo para a ação pastoral.

O ano pastoral que hoje [09 setembro NR] iniciámos tem como lema: «Movidos pelo amor de Deus». Um ano centrado no serviço da caridade e na atenção aos que mais precisam. Esta experiência de sermos uma Igreja Diocesana por inteiro que se reúne e congrega em Fátima, nos 600 autocarros que vieram, diz-nos que por aqui passa o caminho de futuro da Igreja do Porto.

AE – Para além de bispo do Porto, D. António Francisco Santos é também presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana. Como encara este desafio que a Igreja lhe confiou?

AFS – Fui surpreendido para este cargo por parte dos meus irmãos bispos. Vejo este cargo com alguma apreensão, mas também com algum realismo. Todos somos necessários e a Igreja tem de estar muito presente nesta vanguarda da missão. Iniciei o meu trabalho há um mês… Estamos a dar passos e temos preocupações, mas temos também sonhos e propósitos. Temos também um desejo muito grande de trabalhar e estar presente neste espaço tão necessário como é a ação socio-caritativa da Igreja. Temos de ter capacidade de lermos a realidade e escutarmos o mundo. Temos de estar disponíveis para dar resposta às novas formas de pobreza e aos novos desafios da sociedade moderna.

A Igreja sempre teve capacidade de estar presente onde é necessário. O Papa Francisco lidera também e abre-nos caminhos. Saibamos aprender com ele e a Pastoral Social da Igreja em Portugal saberá cumprir a sua missão.

AE – A Semana da Pastoral Social realiza-se de 19 a 21 deste mês e coloca o sublinhado na importância da família. É no seio da família que se trabalha a caracterização social e a capacidade transformadora das sociedades.

AFS – É verdade. É ali que se acolhe o melhor do amor de Deus por cada um de nós. Este desígnio e este lema vai ajudar-nos a perceber que a família é um eixo essencial e imprescindível da renovação da Igreja e da transformação da sociedade. Temos de olhar com gratidão, estima e compreensão porque muitas vezes as famílias são vulneradas e fragilizadas na sua vida e nós, às vezes, não nos apercebemos. A Igreja tem de estar cada vez mais atenta às dores, sofrimentos e clamores da família. Mas também, cada vez mais, decidida em envolver a família por inteiro na transformação da sociedade.

AE – Embora a família vá registando mutações ao longo dos tempos. É necessário estar atento aos vários desenhos familiares?

AFS – Devemos dar espaço a que a ciência faça progressos e avanços. Devemos estar abertos aos caminhos novos da cultura. Devemos estar muito convictos e presentes daqueles valores que são sagrados e perenes, mas devemos ter também uma grande capacidade de diálogo, abertura, presença e proximidade das famílias na sua diversidade e complexidade. A Igreja não se pode fechar nem voltar as costas à realidade atual. Ela tem de saber iluminar e escutar esta realidade. Não somos os únicos a querer o bem do mundo, mas temos uma mensagem que nos vem do Evangelho. A mensagem do Evangelho não é apenas para ser estudada como um repertório da história que já passou, mas um desafio para a história que se constrói.

AE – As famílias têm sido esquecidas, mesmo nas políticas governamentais.

AFS – Nós, muitas vezes, temos esquecido a família. Mesmo na Igreja, a nossa ação pastoral é muito sectorizada. Pensamos nas crianças da catequese, nos jovens e a pastoral juvenil… mas a família no seu todo, que nos traz e traduz a beleza e a perfeição, nem sempre é bem cuidada e nem sempre é bem tratada. Penso que o Papa, na exortação apostólica, nos abre muitos caminhos que nós ainda não fomos capazes de percorrer. Nem fomos capazes de perceber como sinais dos tempos e inspirações do Espírito para o futuro.

AE – Os tempos atuais falam muito de retoma económica, aumento de produtividade e baixa do desemprego. Existe um clima de otimismo. Todavia, isso não evita que continuam a existir muitas situações de fragilidade.

AFS – É fundamental olharmos o futuro numa atitude positiva e proactiva de esperança e confiança. A confiança leva-nos a pensar que todos juntos somos capazes de resolver os problemas, é já de si um passo em frente. Estou contente com esta capacidade de olharmos o futuro com esperança e de não passarmos a vida a lamentar-nos e a queixar-nos da crise e a viver submetidos a esta tirania de que tudo é mau e que estamos no pior tempo da história. Mas depois disso, não podemos esquecer aqueles que mais precisam, que mais sofrem e aqueles em quem ninguém pensa. Não podemos viver o idealismo do otimismo fácil e não vivermos a realidade de uma exigência concreta. Temos a obrigação para as situações reais e objetivas. A conjugação do ânimo, da esperança e da capacidade de ver o futuro com a certeza que somos capazes é essencial, sem esquecer a atenção aos mais pobres. Quando temos vontade de fazer o bem e nos unimos para o fazer em conjunto, conseguimos dar respostas reais aos problemas reais.

AE – O Papa Francisco tem sido muito crítico em relação ao sistema económico vigente e também como as empresas lidam com os colaboradores. A Igreja também faz esta denúncia com frequência, mas também é uma entidade empregadora. Ela precisa de olhar para dentro?

AFS – Tem razão. Todos nós temos as nossas fragilidades. Nós, como diocese, somos dos maiores empregadores da área geográfica do Porto e nem sempre tivemos capacidades para manter os mesmos trabalhos e os mesmos empregos para dar respostas com realismo de aumentos dos salários a quem o merece. Isto obriga-nos a sermos mais competentes, mais profissionais e também mais ousados no sistema da justiça e da equidade entre todos.

Há muito a fazer na Igreja no campo laboral. Eu próprio sinto isto no dia-a-dia e é uma das minhas preocupações prementes neste campo. Nós crescemos naquele humanismo próprio de querer dar emprego a toda a gente e agora estamos circunscritos pela realidade. Muitas vezes não somos capazes de dar respostas através das nossas instituições para manter todos os trabalhadores. Isso dói-nos, rasga-nos a alma e dilacera-nos o coração. A Igreja tem de saber denunciar, mas saber também em denunciar-se a si própria quando não é capaz de viver aquilo que a Doutrina Social da Igreja nos propõe e nos impõe.

AE – As eleições autárquicas estão próximas, fala-se muito do local e do poder local. Os discursos falam muito no valor das pessoas, mas é importante que isso não se esqueça após a contagem dos votos.

AFS – Creio que todos nós somos devedores, após o 25 de Abril de 1974, a um grande caminho feito no poder autárquico. O serviço dos autarcas, a quem eu presto homenagem e admiração, quando realizado como tónica de dimensão de serviço. Aqueles que servem, tanto nas juntas de freguesia como nas câmaras municipais, são os que estão mais próximos de nós e conhecem melhor a realidade. Todavia há realidades que demoram muito tempo. A burocracia e a administração são muitas vezes lentas. Estas atrasam soluções que prejudicam e tornam a injusta a vida das populações. Este é um caminho grande a percorrer… E depois a transparência. Acho que a verdade, a autenticidade e entrega são essenciais. Todavia, considero que o rosto das cidades, vilas e aldeias transformou-se e, graças a Deus, para bem de todos.

AE – Este poder autárquico devia ser reforçado para aumentar a proximidade às populações?

AFS – Entendo que sim. Devemos fazer uma grande reforma da administração central, administração regional e local. Quanto mais aproximarmos os servidores, seja a nível do Estado, das autarquias e instituições daqueles a quem servem para que seja olhos nos olhos, coração a coração, rosto a rosto… Nós estamos a construir um Portugal melhor, mas nesta área temos muito a aprender com outros povos para reforçar o poder autárquico. Aqueles que nos conhecem podem servir-nos melhor.



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