Entrevistas

«É necessário mobilizar a sociedade para formas maiores de solidariedade»

Diário do Minho
...

Afirmou a Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

A presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz considera que existem sinais de potencial conflitualidade na sociedade portuguesa, provocados por factores como o agravamento do desemprego ou o aumento da diferença entre os salários dos administradores e dos trabalhadores indiferenciados. Manuela Silva admite que o grande descontentamento da opinião pública relativamente ao funcionamento do sistema de justiça pode ter efeitos nefastos, pelo que defende que os diferentes actores devem tentar encontrar respostas para aumentar a sua eficácia, em vez de entrarem num ping-pong de responsabilidades. Em entrevista ao Diário do Minho, esta responsável diz que é necessário mobilizar a sociedade no seu todo para formas maiores de solidariedade, de forma a enfrentar este período de transição. Em seu entender, os cidadãos têm de ser mais exigentes e a Igreja deve apostar na formação, especialmente dos leigos, pois são eles que estão nas empresas, nos tribunais ou nos partidos. Manuela Silva esteve em Braga para apresentar o livro “Cidadania Activa. Desenvolvimento Justo e Sustentável”, que pretende provocar uma reflexão sobre os desafios dos nossos tempos. Diário do Minho (DM) — Num resumo que fez do livro “Cidadania Activa. Desenvolvimento Justo e Sustentável” referiu que a reflexão em torno deste mundo globalizado girou em torno de três grandes pilares: o Estado, as empresas e os cidadãos. Que desafios é que se colocam ao Estado? Manuela Silva (MS) — O Estado vê-se, actualmente, confrontado com duas forças antagónicas. De um lado há os que defendem menos Estado e que pretendem reduzir as suas funções a sectores muito delimitados, como sejam o caso da Justiça, da Defesa e pouco mais. Esta é a corrente de pensamento neoliberal, segundo a qual o mercado é tudo e resolve todos os problemas. Esta perspectiva vê mesmo no Estado um travão para o bom funcionamento do mercado. Em contrapartida, o funcionamento da economia tal como a conhecemos presentemente tem trazido consequências sociais em relação às quais se pede a intervenção do Estado. É o caso da grande pobreza, do desemprego e da necessidade de assegurar melhor preparação aos indivíduos — em particular das novas gerações — para viverem numa sociedade baseada no conhecimento. O Estado vê-se com esse papel, e a meu ver bem, de ter que contribuir de alguma forma para uma certa disciplina ou regulação do mercado e de ser pró-activo no sentido de concorrer para a satisfação das necessidades básicas dos seus cidadãos, para a harmonia das relações sociais e para a coesão social. Por isso é que é tão importante o debate que neste momento existe a nível europeu acerca do modelo social. O que está em causa é definir se a Europa deve continuar a pugnar por um modelo social e qual o papel que os governos e os vários actores sociais em geral têm nesse modelo. DM — É fundamental introduzir a ética na economia? MS — É fundamental. Aliás, a economia nunca se deveria ter desprendido da ética. A economia nasceu como uma ciência ética, como uma ciência de valores. Penso que é indispensável que a economia enquanto ciência humana se deixe criticar pelos valores inerentes à dignidade da pessoa humana, ao bem comum, à equidade e à justiça. DM — Que contributo é que a Igreja pode dar? MS — A Igreja tem um contributo muito importante a dar nesta matéria. Desde logo, na formação dos seus próprios membros, em particular dos leigos, pois vão ser eles que vão constituir a sociedade. A Igreja não está fora das empresas, dos tribunais ou dos partidos, porque os seus membros estão lá. Na medida em que os leigos tiverem uma formação teológica mais aprofundada, que seja compaginada com a Doutrina da Igreja, desde as Constituições do Vaticano II até à Doutrina Social, certamente que isso será uma mais-valia para a sociedade. DM — E isso está a acontecer ou ainda não? MS — Essas perguntas não têm respostas de sim ou não. O que eu posso dizer é que é de desejar que aconteça cada vez mais. Por exemplo, vão decorrer aqui em Braga as Semanas Sociais cujos objectivos serão, certamente, os de contribuir para uma maior consciência social de quantos reclamam a sua condição de discípulos de Cristo. DM — No meio deste mundo em mudança, não corremos o risco de termos pessoas frustradas e revoltadas em vez de cidadãos com a perspectiva de que podem fazer alguma coisa? MS — Esse é um dos grandes riscos desta nossa sociedade da pós-modernidade. É um risco que leva à anomia social, no sentido de desinteresse pelas normas de participação e integração social, mas também a riscos de criminalidade acrescida. Se os indivíduos não estão inseridos na sociedade, se não têm um sentimento de pertença, se a própria sociedade os rejeita, se não lhes dá oportunidades de emprego, de participação ou de participação nos rendimentos, isso é um terreno fértil para uma certa propagação da criminalidade. Há, neste aspecto, uma grande responsabilidade por parte dos intelectuais, dos políticos e dos media, que insistentemente veiculam imagens de negatividade, de derrotismo, de pessimismo e de frustração relativamente aos problemas. É verdade que vivemos um período de crise — crise no sentido de transição —, mas estes períodos podem ser ocasiões muito fecundas relativamente à imaginação de novas potencialidades e oportunidades. É preciso que os meios de comunicação social puxem por essa dimensão da crise: ver a crise não necessariamente como uma derrota, mas como uma possibilidade para o desenvolvimento de formas mais avançadas de economia e de sociedade. DM — O que está a acontecer com a Justiça em Portugal não é um factor de desânimo, de descrédito das instituições e do surgimento de formas de justiça popular? MS — É um risco. Há um grande descontentamento da opinião pública relativamente ao sistema de justiça, que se prende mais com o funcionamento do que com as leis que nos regem. Do ponto de vista do enquadramento legal, Portugal é um país avançado em muitos domínios e de um modo geral está a par da legislação dos países mais desenvolvidos. O grande desafio está ao nível do funcionamento do sistema. Aí é que todos nós, cidadãos, temos que ser mais exigentes, para que não haja uma justiça para ricos e outra para pobres — neste aspecto temos de referir os problemas das custas e do pagamento dos advogados, por exemplo —, temos que ser mais exigentes com a celeridade dos processos e temos que exigir uma maior responsabilização de todos os que são parte do sistema e não apenas do Governo. Todo o sistema tem que responder diante da opinião pública pela eficiência ou não com que está a funcionar. Como cidadã, como espectadora, digo que temos assistido a um ping-pong de responsabilidades de uns sectores para outros, o que não me parece ser muito promissor. Mais vale que as pessoas se sentem à mesa, que reconheçam as debilidades do sistema e que façam propostas concretas para as eliminar. DM — Sente mais factores de conflitualidade na sociedade portuguesa? Pensa que em Portugal poderia acontecer algo semelhante ao que se verificou em França? MS — Não queria comparar os dois países porque as realidades são muito diferentes, nomeadamente em relação aos imigrantes. Agora, existem sinais de conflitualidade potencial na sociedade portuguesa. Enquanto houver o nível de desemprego elevado como estamos a verificar só aí já temos um grande potencial factor de instabilidade. Não é credível que jovens à procura de emprego permaneçam numa aparente passividade durante muito tempo e não é credível que populações inteiras de determinadas localidades tenham ficado de um dia para o outro sem emprego, sem reacção. É preciso prever mecanismos de transição e de compensação para as mudanças que são necessárias. É necessário mobilizar a sociedade no seu todo para formas maiores de solidariedade. É inaceitável continuarmos a assistir a uma grande desigualdade, que parece aumentar cada vez mais, no que se refere à repartição dos rendimentos e da riqueza. DM — A questão põe-se ao nível das desigualdades fiscais? MS — Não é só ao nível fiscal que a questão se põe, mas também em relação às remunerações. O leque de remunerações salariais é hoje mais elevado do que nunca. Há uma distância abissal entre o trabalhador não qualificado e o administrador da empresa. Há quem diga que as remunerações dos administradores são correspondentes a um mercado e que há necessidade de atrair pessoas com qualidade para aquelas funções. É verdade, mas os administradores portugueses têm níveis de remuneração mais elevados comparativamente com os seus colegas europeus, o que é inaceitável num país que é comparativamente mais pobre. Podemos falar também das profissões liberais, da economia informal e da corrupção. Tudo isso tem configurado uma sociedade que neste momento tem, por um lado, uma percentagem relativamente reduzida de muito ricos e, por outro, uma percentagem elevada de muito pobres.


CNJP