Entrevistas

Ética nas empresas mobiliza consciências para o bem comum

Jornal da Madeira
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As relações inter-pessoais no mundo laboral e as perspectivas de lucro na actual economia de mercado pressupõem, cada vez mais, princípios de orientação sólidos, capazes de garantir a felicidade de todos e de cada um. A Doutrina Social da Igreja, a este respeito, surge como revolucionária. Concretizar os seus ditames, ainda que motivados em contextos históricos específicos, é actualizar a mensagem do Evangelho e interpretar os sinais dos tempos com uma mentalidade esclarecida. Associações nacionais e internacionais são disso testemunho no nosso tempo. A ideia nasceu em 1951, em Roma. Encontrando-se entre a multidão na Praça de São Pedro, por ocasião do Ano Santo, o engenheiro português Horácio de Moura travou conhecimento com o Secretário da UCID italiana (união cristã de dirigentes). De regresso a Portugal, empenhou-se em concretizar a pastoral dos empresários, com o apoio do então jovem capelão do Carmelo, assistente da JOC e da LOC (Acção Católica), padre João Evangelista. Actualmente com 81 anos, o Pe. João Evangelista pertence à diocese de Coimbra e recorda que foi colega dos bispos madeirenses D. Teodoro Faria e D. Maurílio Gouveia, em Roma, onde «fiz estudos sociais na Universidade Gregoriana. Trabalhei na Acção Católica. Fui professor do ISET (Instituto Superior de Estudos Teológicos de Coimbra) e da Universidade Católica, em Lisboa, onde introduzi a cadeira de Ética Empresarial». Em entrevista ao Jornal da Madeira deu a conhecer o interesse e os objectivos da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), com grande notoriedade no nosso país e apostada em praticar os conteúdos da Doutrina Social da Igreja. Jornal da Madeira — Que motivos presidem a uma associação católica de entidades patronais ou empresários? Pe. João Evangelista — O motivo principal é a formação dos empresários dentro dos parâmetros da ética, da Doutrina Social da Igreja. As encíclicas sociais constituem um tema obrigatório, um verdadeiro manual de conduta para reuniões e encontros, para questões cadentes do trabalho, da fiscalidade, por exemplo. Desde o início, a nossa acção apostou em congressos e actividades que centravam a sua atenção nos problemas do trabalho e das carências sociais. Com o 25 de Abril, as coisas mudaram. Tivemos dificuldade em superar certas situações, predominavam os ideiais marxistas, os revolucionarismos baratos e a luta de classes não eram favoráveis e a Igreja não queria comprometer-se com os chamados ricos. Nessa altura, só tínhamos contactos internacionais. Mais recentemente, mudámos o nome para ACEGE — Associação Cristã de Empresários e Gestores — numa espécie de “marketing”, mas os princípios continuam a ser os mesmos. Aliás, D. António Marcelino, então bispo do Apostolado dos Leigos, sugeriu-nos a necessidade de arranjar outra roupagem, de modo a alargar o leque de participações. E assim continuamos. Hoje, a ACEGE é uma referência de alto nível no panorama social e económico do nosso país. JM — Que resposta tem a Doutrina Social, por exemplo, para as questões do emprego, para as crises da economia? Há influências concretas? JE — Uma das grandes iniciativas da ACEGE é a relaização de congressos. E, por aqui, já se pode avaliar a importância em seguir a Doutrina Social da Igreja e o grau de influência que exerce nas empresas. O último congresso, com a participação de mais de mil empresários, foi sobre a ética empresarial. Uma análise concreta sobre a necessidade de se introduzirem nas empresas preocupações de fundo, com carácter sólido, como a imagem de uma empresa honesta, responsável, com vista ao bem-estar de todos os seus agentes e da comunidade em geral. Esta consciência não pode faltar. Mas a maior preocupação, neste momento, incide sobre os problemas da cidadania. Temos, neste campo, a revista “Nova Cidadania” ligada à ACEGE. Uma espécie de cordão umbilical, de conselho consultivo, com o apoio de peritos, que contribui grandemente para existência da Associação. A “Nova Cidadania” tem na sua direcção o Professor João Carlos Espada e o Professor Mário Pinto, entre outros reputados especialistas na matéria. As nossas preocupações vão no sentido de proporcionar bom relacionamento entre todos os intervenientes em questões do código do trabalho e legislação laboral, em geral. Para o mês de Outubro, prevê-se a aprovação do Código para os empresários. JM — Mas o problema do emprego não passa só pelos decisores políticos, é essa consciência que tem de ser posta em prática? JE — Com certeza. As coisas agora não se resolvem só assim. Estou a preparar um trabalho sobre a pobreza e descubro coisas interessantes. No fundo, estamos mergulhados nesta noção de globalidade que é real, mas quase que só a entendemos como oportunidade para os negócios. Ora, a globalização é também para o mundo da cultura, da religião, em todos os domínios da vida humana. O mundo de hoje está a acordar para uma realidade de complementaridades fundamentais. Vejamos, a verdade hoje não está nas ideologias separadas, está nas sínteses, em saber fazer as sínteses das direitas e das esquerdas. A verdade não está num lado só, uma sem a outra não sobrevive. É preciso entender o que une as duas realidades que lutam logicamente em direcções opostas, mas que, no fundo, na sua profundidade, se aproximam. Creio que as decisões políticas ou a política se estão a meter muito na luta contra a pobreza. Isto é um campo que sempre foi da Igreja e que fala, antes de mais, às consciências. Fica-se espantado com esta ideia da guerra contra a pobreza, da luta antipobreza porque, de facto, é um problema social de primeira evidência. Mas começamos a perceber que não há nenhum problema concreto do emprego, do trabalho, etc., que dependa só de uma decisão política; é, sobretudo, uma questão cultural muito grave. Veja-se o que sucedeu ao chamado salário mínimo garantido, que, a par dos benefícios devidos, criou outros vícios e ilusões. Pobreza não se resolve com esmolas A Doutrina Social, na sequência da caridade da Igreja, promove uma mentalidade de acordo com o realismo presente. Durante séculos, resolvíamos os problemas dos pobres com esmolas. Mas o problema das esmolas está em causa nesta altura. Se fizermos uma análise mais aprofundada sobre isto, de acordo com as interpretações teológicas de Calvino e de Lutero, reconhecemos que esta mentalidade da esmola surgiu com o da salvação pela fé: «só Deus salva, só a fé salva». Muitas ilações se foram tirando daí e uma delas é que se os pobres eram os amaldiçoados, os desamparados de Deus que os não queria salvar. Havia, entretanto, a sensação de que essa gente, por esse caminho, não encontrava a salvação. Era preciso encontrar os caminhos do trabalho, porque havia também muitos pobres falsos e mentirosos e que resultavam de uma certa preguiça em assumir compromissos ou responsabilidades. O nosso realismo tem de partir daí. Temos de saber o que é a pessoa humana, temos de perceber que as pessoas procuram todas, à sua maneira, o seu bem-estar, o seu maior benefício possível, e não podemos apresentar-lhes uma doutrina totalmente pura, angelical ou despida destes interesses. O ser humano exige que se faça uma síntese. Não é só pregar à alma que se resolvem os problemas do ser e da pessoa. JM — O que acha da afirmação que a “Igreja não se deve meter na política”? Simples preconceito? JE — Essa frase é sábia apenas quando se trata de política partidária, de luta pelo seu grupo. No geral, a política compromete-se nas soluções concretas e todas as soluções têm as suas imperfeições. Os cristãos não podem, de maneira alguma, comprometer-se nessas soluções partidárias, porque, na sua percepção, pode haver aperfeiçoamentos constantes. Os cristãos devem empenhar-se, sim, numa visão do mundo que envolva as realidades temporais, englobando também as políticas, mas para as ajudar a resolver e a aperfeiçoar as soluções que forem encontrando, como ainda há pouco aconteceu com o congresso sobre a ética empresarial. O congresso não foi para ensinar o “abc” às pessoas, mas levá-las a reflectir e a introduzir nas suas empresas preocupações que antes não tinham. JM — O lucro prejudica o espírito de equipa empresarial e a solidariedade? JE — Não é possível dizer a uma pessoa fiel a Deus e à Igreja que o lucro não deve existir. O lucro é uma realidade tão natural e ligada a todas as actividades humanas, que cada um de nós procura tirar proveito da sua actividade, para que se obtenham bons resultados. Se as pessoas têm uma actividade económica, o lucro é uma resolução boa, é o sucesso dessa actividade. Se trabalham e não têm lucro, então o melhor é não fazer nada. Se trabalhamos para fazer o bem e não conseguimos esse benefício, era melhor mudarmos de ofício, não é? Por outro lado, não se pode confundir esta prática saudável do lucro com o capitalismo. Penso que isso já está muito ultrapassado. O capitalismo, como ideologia não existe, como tantas outras que ficaram pelo caminho. Hoje, estamos numa fase de maior consciencialização. JM — Em suma, a Doutrina Social da Igreja é sempre actual e promissora dos projectos humanos. JE — É isso. Considero as grandes encíclicas sociais como cartilhas fecundíssimas de vitalidade. São pioneiras nos temas. As coisas que nelas estão tratadas foram reflectidas com a autoridade de quem sabe do assunto. O que se passa, muitas vezes, é que falta este “arejamento”, esta mentalidade. E é preciso pôr tudo isso em prática. Os cristãos e toda a gente em geral deviam estar mais atentos a esta doutrina e arejar esses textos precisos, escondidos eventualmente na prateleiras. É preciso metê-los na vida, trazê-los de novo à leitura dos acontecimentos. Assim, sem dúvida, se justifica a existência de uma Associação Cristã de Empresários. É preciso deixar-se guiar por essas orientações sábias que há mais de um século sugerem o bem comum como providência única para se evitarem os conflitos, as crises ou a falta de desenvolvimento social. Tudo isto também pressupõe uma vivência autêntica do espiritual. O esquema mais grave e a grande preocupação é a perda do sentido sagrado na nossa sociedade. Confundem-se espiritualismos com espiritualidade. Promovem-se grandes actividades, mas não somos capazes de transmitir o sentido do sagrado. As pessoas precisam de aprender a rezar, a falar com Deus e a viver na fonte das águas vivas. Se as pessoas vão às igrejas e encontram uma certa superficialidade, cada um a falar para o seu lado, aí tudo se torna mais difícil. Esquecemo-nos, nós os cristãos, de que somos apenas tabuletas para indicar o caminho de Deus e do céu. As pessoas, se não descobrem isso, não descobrem nada. Se não conseguimos transmitir esta primeira exigência interior, praticamente não prestamos grandes serviços.


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