«A Invenção do Mundo Arte Sacra da Diocese de Beja» mostra trabalho de excepção do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. A Agência ECCLESIA entrevistou o «pai» deste projecto: José António Falcão
Agência ECCLESIA (AE) – Como surgiu a ideia da exposição “A Invenção do Mundo – Arte Sacra da Diocese de Beja” patente ao público no Paço Episcopal de Faro?
José António Falcão (JAF) – Esta exposição é a terceira do ciclo das grandes exposições da diocese de Beja. É o terminar de um ciclo. A primeira exposição - «Entre o Céu e a Terra» - esteve patente ao público em Beja (Convento de S. Francisco) e depois em Lisboa (Panteão Nacional). Este evento visava, sobretudo, dar a conhecer as raízes do território. A segunda – «As formas do Espírito» - esteve em Roma e depois em Lisboa (Galeria de Pintura do Rei D. Luis – Palácio da Ajuda). Estava mais vocacionada para dar a conhecer a espiritualidade do Baixo Alentejo.
A terceira - inaugurada a 27 de Dezembro e a decorrer até 27 de Abril, em Faro – intitula-se «A Invenção do Mundo» e pretende dar a conhecer a estética – a cultura artística da nossa área.
AE – A cultura do baixo Alentejo?
JAF – Sim mas abrindo referências ao Algarve porque há muitos contactos culturais e religiosos entre as duas regiões.
AE – E nasceu «A invenção do Mundo»?
JAF – Esta exposição estava gizada há quatro anos e surgiu o convite do Ministério da Cultura para apresentarmos a exposição este ano no evento «Faro, Capital Nacional da Cultura».
AE – Teve um «parto» difícil?
JAF – Depois de algumas dificuldades vencidas – primeiro não existia sítio – a diocese do Algarve cedeu o Paço Episcopal para realização desta exposição. Depois daquelas ultrapassadas foi possível inaugurá-la a 27 de Dezembro.
«A invenção do mundo» é o culminar da trilogia
AE – É composta por quantas peças?
JAF – Cerca de centena e meia de peças (esculturas, pinturas e obras de arte decorativas) mas algumas delas de grande dimensão. Todas as peças patentes ao público resultam do trabalho de inventário que a diocese de Beja tem vindo a realizar e são provenientes de Igrejas, Mosteiros, Conventos e Museus. Foram, propositadamente, restauradas para participarem na exposição.
AE – Esta «invenção» tem um itinerário?
JAF – A exposição tem como fio condutor uma a reflexão estética em torno da realidade da criação artística. O fio condutor é o relato bíblico: livro do Génesis e a descrição dos sete dias da criação do mundo.
AE – A «Invenção do Mundo» é o culminar da trilogia?
JAF – A diocese irá realizar mais exposições mas este ciclo chegou ao seu términos. Atingiu o seu objectivo – contar a história, através da arte, a presença da Igreja no Baixo Alentejo.
AE – As obras de arte que estão nesta exposição viram as luzes da ribalta pela primeira vez ou existem peças repetidas de outras exposições?
JAF – Há uma peça que esteve no «Entre o Céu e a Terra» e outra na «As formas do Espírito». As restantes eram desconhecidas do grande público. A concepção da exposição foi difícil porque relatar a «Criação do Mundo» e ilustrar a Bíblia é muito complicado. Temos cerca de 200 mil obras de arte na diocese de Beja mas há capítulos onde estamos mais fracos. Esta exposição insere-se também num trabalho que a diocese tem vindo a fazer: a descoberta da Bíblia como um tesouro de espiritualidade e de cultura.
AE – Uma exposição «condenada» ao sucesso?
JAF – Só o público é que dirá... Nos dois primeiros dias de funcionamento já foi visitada por centenas de pessoas. No dia 28 de Dezembro tivemos dificuldades em dar resposta a todos os pedidos de compra de bilhetes e recebemos o Secretário Geral da UNESCO.
Exposição «condenada» ao sucesso
AE – Qual a receita para este sucesso?
JAF – Em primeiro lugar, é a beleza e a mensagem profunda que a arte sacra continua a transmitir às pessoas. Estas, independentemente de serem crentes ou não, acabam por não ficar insensíveis a esta espiritualidade. Todas as pessoas são unânimes em reconhecer que as exposições que a diocese tem feito têm peças que agradam aos sentidos e, particularmente, ao olhar.
Em segundo lugar, temos feito um esforço – científico e técnico – para que as exposições tenham o nível adequado na apresentação. Além destes dois argumentos, a diocese de Beja criou um público fiel que acompanha, com muito interesse, as exposições feitas. Hoje, o Alentejo é uma região que interessa muito porque tem semente e uma personalidade própria.
AE – A exposição «A Invenção do Mundo» surge no final da iniciativa – Faro, Capital Nacional da Cultura 2005. O «melhor vinho» foi servido no encerramento?
JAF – A sessão de encerramento foi na exposição onde esteve o Secretário de Estado da Cultura. A organização quis escolher este evento para fechar mas as dificuldades iniciais – realização de obras no Paço Episcopal – atrasaram também a inauguração.
AE – A diocese de Beja é pioneira nestas realizações artísticas?
JAF – É um instrumento de contacto com o grande público e de evangelização mas esta iniciativa é o resultado do trabalho de duas dioceses. Embora as peças sejam da diocese de Beja, o Algarve teve um papel decisivo (realizou as obras, colaborou na organização e abriu-nos as portas). Um bom exemplo de colaboração entre duas dioceses.
AE – Exposições evangelizadoras?
JAF – Este trabalho tem um fio de valorização das nossas raízes culturais e espirituais mas procuramos não esquecer as duas outras religiões – Judaísmo e Islamismo – que nos marcaram. Aliás, apresentamos uma peça - o ex-libris desta exposição –, um pano de parede de uma mesquita, fabricada na Turquia Otomana, no século XVI – XVII. Estava em muito mau estado, a servir de sudário a uma imagem do Senhor Morto, na Igreja de Baleizão. Esta peça é, um pouco, o emblema do nosso trabalho.
AE – Uma «Invenção do Mundo» Inter-Religiosa?
JAF – Procura abrir esta perspectiva mas assumimo-nos como exposição de arte cristã.
A inventariação é um trabalho moroso
AE – O que falta às outras dioceses para mostrar as suas obras de arte sacra?
JAF – A parte de inventário ainda está atrasada. Uma deficiência nacional muito profunda. A responsabilidade não é só da Igreja. Envolve também as entidades do Estado. Neste campo existe também a dificuldade de criar sinergias.
AE – A diocese de Beja já inventariou todo o seu património de arte sacra?
JAF – Estamos a chegar à parte final mas temos tido surpresas. Aparecem sempre peças novas, sobretudo aquelas que não estão nas Igrejas (nas mãos de particulares). Recentemente, fez-se um trabalho muito cuidadoso, no seminário de Beja, de localização de património e encontraram-se algumas dezenas de peças de que ninguém conhecia a existência. O Seminário de Beja está a preparar o seu museu, será inaugurado nos próximos meses.
O inventário é um trabalho moroso, embora nunca esteja concluído, já estamos muito perto do fim. Depois iremos digitalizá-lo e colocá-lo à disposição das pessoas.
AE – Mas muitas peças estão nas mãos de particulares que as compraram nos antiquários?
JAF – Algumas delas foram vendidas ilegitimamente. Peças que foram furtadas em Igrejas. Apesar destes acontecimentos, a nossa diocese tem feito um grande trabalho no sentido de melhorar as condições de segurança – instalação de sistemas de alarme nas principais Igrejas. Nas zonas mais desertificadas e rurais persistem alguns problemas e estamos sempre angustiados com essa realidade.
O circuito de tráfico de obras de arte é muito poderoso
AE – Como combater o circuito «poderoso» de tráfico de obras de arte?
JAF - É muito poderoso. Continuamos a assistir a tentativas de assalto a Igrejas para furtar obras de arte. Em 2005, tivemos quatro ou cinco assaltos que nos preocuparam bastante. Felizmente, eram Igrejas onde tínhamos tomado precauções.
Com este problema, as dioceses não conseguem lutar isoladas. Os ladrões não conhecem as fronteiras das dioceses.
AE – Na área da segurança, a diocese de Beja também está na vanguarda?
JAF – Sim porque o inventário tem ajudado. Por outro lado, tem havido um investimento forte na instalação de sistemas de alarme.
AE – Uma percentagem alta?
JAF – Temos cerca de 50 Igrejas protegidas. Cerca de 10% da totalidade das Igrejas.
AE – O projecto Igreja Segura tem ajudado?
JAF – Ainda não teve repercussão na diocese mas temos esperança que isso venha a acontecer nos próximos anos.
AE – Como é que um homem nascido em Lisboa se tornou guardião dos templos do Baixo Alentejo?
JAF – Nasci em Lisboa mas vivo no Alentejo desde os primeiros dias. Toda a minha família é alentejana.
AE – E a sensibilidade para a arte sacra é hereditária?
JAF – Eu vivia muito perto da Igreja Paroquial e sempre colaborei nas actividades da minha paróquia e da Misericórdia. Os meus pais e familiares eram muito ligados à Igreja e recordo-me, tinha talvez seis/sete anos, da minha avó me encarregar de reunir fundos, no Natal, para se conseguir colocar portas novas numa Igreja rural que tinha sido assaltada.
AE – Influências da Família?
JAF – Sim. Sim. Depois surgiu o desejo de aprofundar conhecimentos e acabei por formar-me em História da Arte e Arquitectura.
AE – Depois de formada vai trabalhar para Espanha?
JAF – Trabalhei como conservador de Museus em Espanha e fiz grande parte da minha carreira lá. Vivi oito anos em Espanha e acompanhei de muito perto actividades nas dioceses espanholas. Em 1984, surgiu o convite, do então bispo de Beja, para organizar, a partir do zero, o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja.
Reconhecimento nacional e internacional
AE – Partiu do zero mas a meta está à vista?
JAF – Este trabalho não tem caído em saco roto e tem sido reconhecido pela diocese.
AE – E extra diocese?
JAF – Felizmente para nós fomos reconhecidos pelo Ministério da Cultura – atribuiu-nos, em 2004, a medalha de mérito cultural – e, em 2005, ganhámos o prémio da União Europeia para a Salvaguarda do Património.
AE – Com o trabalho realizado consegue estancar a sangria populacional da diocese de Beja?
JAF – Começamos a ter alguma repercussão no terreno. Já temos cinco núcleos museológicos a funcionar (Santiago do Cacém, Cuba, Castro Verde, Moura e Beja ) e iremos inaugurar, muito proximamente, mais dois (Sines e o Museu Episcopal de Beja). Assim, ficamos com a rede museológica da diocese completa.
Cada museu tem três ou quatro colaboradores mas é um nicho que não existia. Capta gente nova e encontraram aqui a maneira de não sair da sua terra. Na conservação e Restauro damos trabalho a restauradores da nossa região.
AE – Com estas experiências positivas, as dioceses portuguesas não recorrem aos vossos serviços?
JAF – Temos colaborado, de forma mais directa, com as dioceses do Algarve e de Évora. Colaboramos também com a Conferência Episcopal e com o Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja. No futuro haverá outras formas de colaboração que poderão ser articuladas, especialmente com a Associação Portuguesa de Museus da Igreja Católica.
Apostar no acolhimento nas igrejas
AE – Que tipos de colaboração?
JAF – Através de mecanismos de formação em comum. Todos os anos fazemos uma acção de formação. Começamos com os padres da nossa diocese e, neste momento, estamos a investir nas comissões fabriqueiras. Sentimos que era necessário fazer isto a nível nacional.
Existe também um sector que necessita do nosso investimento: acolhimento nas igrejas. Por todo o país temos igrejas abertas ao público mas, muitas vezes, o acolhimento falha. Olha-se para o público apenas como aquele que coloca a esmola na caixa mas esquece-se que esta é uma magnífica ocasião para o contactar.
AE – Evangelizar através da arte...
JAF – Estou muito empenhado para que possa existir um trabalho nacional e acredito que a Associação de Museus da Igreja Católica poderá ter aí um papel decisivo.