Entrevistas

Governar a Igreja Católica

Luís Filipe Santos
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Centrado numa figura e atento a muitas realidades

Agência ECCLESIA (AE) – Como podemos classificar o modelo de Governo da Igreja? Fernando Micael Pereira (FMP) – Por um lado é um governo centralizado. O próprio facto do Papa ser eleito por uma maioria qualificada, apesar de não ser esse o factor principal de centralização, mostra logo uma intenção muito grande de haver um grande consenso à volta de uma figura. Um facto normal porque o governo que é desejável para uma entidade ou organização deve corresponder à sua natureza e às suas finalidades. A Igreja é uma entidade simbólica como qualquer outra religião. Sendo uma entidade simbólica coloca-se o problema das referências, de estar muito centrada em referências. Um governo centralizado facilita esta centração em referências. Centralizado, embora com os últimos Papas, esta tenha sido progressivamente centrada na figura, numa pessoa concreta. Sempre o foi mas agora com uma grande visibilidade. Cada vez mais centrado na pessoa do que na instituição. Sem a pessoa substituir a instituição. Trata-se de haver um rosto que aparece às pessoas e tem, efectivamente, a sua flexibilidade. João Paulo II era excelente nas rupturas. É um primeiro sinal da flexibilização. Contudo, não podemos ver o governo da Igreja somente nessa perspectiva. Efectivamente, a Igreja sendo muito grande é uma entidade muito descentralizada também. Tem periferias que não são externas. Tem uma base que é extremamente extensa e com uma grande organização em pequenos grupos (desde comunidades de base a toda a estrutura territorial). Uma organização muito desdobrável em imensos órgãos que têm uma relativa autonomia: a estatutária (dada pelo Direito Canónico) e prática (maior que a do Direito Canónico). Em termos da sua organização de base, desde a fundação da Igreja que se põe uma tensão entre dois pólos: ordem e carisma. Os carismáticos desde o princípio que têm um peso bastante grande na Igreja. A Igreja sempre reconheceu uma hierarquia – não falo apenas no Colégio Episcopal – o que é lógico. Para além desta ordem há esta velha ideia que o Espírito sopra onde quer e que as pessoas têm dotes especiais. Há uma sacralização muito grande destes dotes. A própria expressão «Espírito sopra onde quer» mostra que o carisma rompe a ordem. Uma transgressão não penalizável. Ordem e movimento podem conjugar-se como podem, porventura, estar em tensão. Isto dá uma flexibilização à Igreja extremamente grande. AE – Este sistema piramidal é similar com a monarquia? FMP – Não podemos deixar de pensar que houve influências de modelos históricos ao longo do tempo. Até mais que a monarquia, logo na sua base, o império. Com todas as suas vantagens e inconvenientes foi um modelo organiza-cional para a Igreja. Há influências desse modelo mas seria uma má leitura só pensar nesse modelo. O próprio modelo imperial teve as suas vantagens. Apontava para a univer-salização. Em muitas épocas, a Igreja pensou esta dimensão piramidal que é típica, por exemplo, da história da indústria que a radicalizou mais que a própria monarquia. Por outro lado, na Igreja temos a importância dos «irmãos». Há uma interacção horizontal que é extremamente significativa: entre os diferentes grupos e as diferentes pessoas. É perfeitamente possível que elas se unam sem haver delito. E veja-se o exemplo da intensificação dos grupos de base e dos diferentes conselhos. Um modelo de pastoral baseado na dimensão horizontal e não só na dimensão hierárquica. Em termos organizacionais, se a hierarquia for rígida pode tornar-se desfuncional. AE – No conclave elege-se o Chefe de Estado do Vaticano e também o Chefe da Igreja Universal. FMP – Quando se quer copiar directamente o governo da Igreja do governo de um estado faz-se confusão. No conclave elege-se o rosto da Igreja, o Vigário de Cristo. Aquele que está a substituir outro. O Papa irá delegar num cardeal o Governo do Estado do Vaticano. No Século XIX e princípio do Século XX levou tempo a Igreja a digerir o perder os Estados Pontifícios. E reclamou porque aí não se tratava só do Chefe de Estado do Vaticano mas de um território extremamente significativo em Itália. AE – Um Papa quando fala para uns é progressista e para outros é conservador. Uma terminologia política. Palavras de Chefe de Estado ou de Chefe da Igreja? FMP – Muito mais como Chefe da Igreja. Embora essa leitura seja puramente legítima em termos parlamentares. Mas penso que não é só a propósito de um Estado que se pode dizer que alguém é progressista ou conservador. Isto pode-se dizer de qualquer entidade e até de atitudes pessoais. Na opinião pública, João Paulo II foi um caso nítido em relação a isso. Nos aspectos morais que se consideraram extremamente progressistas tivemos a Ética sobretudo social. E foi considerado conservador, muitas vezes pelas mesmas pessoas, na Moral Sexual. Também se fizeram considerações sobre João Paulo II nestes domínios: Papa progressista para fora e Papa conservador para dentro. AE – O conservadorismo «ad intra» está relacionado também com pouca independência das Conferências Episcopais. FMP – A Igreja espalha-se por imensos países. É preciso dar muita latitude às Conferências Episcopais mas se não há – Teológica, Ética e Moral – algumas referências básicas teremos uma colecção de confissões religiosas e não uma Igreja. Estamos a lidar com uma entidade simbólica. Um grande desafio da globalização. Terá que haver pautas de fé muito claras e um catecismo muito claro mas também dar autonomia às conferências. AE – O Direito Canónico corresponde à nossa Constituição da República? FMP – Penso que é mais abrangente. O Direito Canónico não tem como função principal regular o Estado do Vaticano ou regular uma posição internacional da Igreja. O Direito Canónico inclui princípios e tem recomendações. Ele cruza a interpretação e a recomendação. Não é o Direito Canónico que institui a Igreja, ela está instituída noutra base. AE – Os cardeais estão a escolher o novo chefe da Igreja. Uma eleição com mais mediatismo que um Chefe de Estado de um país qualquer. A que se deve esta ânsia de notícias? FMP – Para o bem e para o mal há o ressurgir do religioso. A religião é uma certa resposta a um pedido sentido da sociedade actual. Por outro lado, João Paulo II conseguiu desenvolver uma religião muito associada ao entusiasmo. Estamos muito sensíveis à sensação do momento. O conclave está a ser um desses momentos de entusiasmo no prolongamento do que se passou com a morte do Papa. É um tema de comunicação excelente porque tem também o seu secretismo.


Conclave