Entrevistas

Irmã Lúcia desafiou a Igreja e a sociedade

Agência Ecclesia
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D. Carlos Azevedo, Presidente da Comissão Científica para a Documentação Crítica de Fátima, fala à ECCLESIA da importância da vida e obra da Vidente

Programa ECCLESIA – As “Memórias” da Irmã Lúcia são fundamentais para entender Fátima? D. Carlos Azevedo – Sim, são um dos instrumentos fundamentais para percebermos a descrição do fenómeno espiritual de Fátima. Essas memórias foram escritas, como sabemos, com dados dos acontecimentos, já com enquadramento teológico e cultural. Os Videntes, contudo, não são os intérpretes, essa tarefa compete à Igreja, a eles competia narrar o que de facto decorreu. Essa descrição coube à Irmã Lúcia, porque os outros não se apercebiam de muitas das coisas e, devido à sua morte prematura (1919 e 1920), deixaram a Irmã Lúcia como a grande transmissora da sua experiência espiritual. E – Qual é a teologia de Fátima? CA - É uma revelação particular e, como qualquer revelação particular, enquadra-se na grande revelação que atingiu a sua plenitude em Jesus Cristo. Por isso, sublinha uma determinada verdade para um tempo concreto. Nessa dimensão, podemos dizer que Fátima é profundamente profética, porque unindo-se à realidade de 1917 – num contexto de ateísmo e de anti-clericalismo – Fátima vem enquadrar-se nessa história, ao fazer um apelo à conversão, ao dizer que o mundo estava a tornar-se destruidor de si próprio com a I Guerra Mundial que estava em curso. O desenvolvimento dos acontecimentos sucessivos no século XX veio confirmar os temores que Fátima antecipava e para os quais dava resposta, dizendo que com a conversão - através da penitência e da oração – se podia encontrar um caminho. Assim se sublinhou uma dimensão essencial do Evangelho, o apelo à conversão. E – Há quem diga que a escrita da Irmã Lúcia é simplista... CA - Penso que a inocência e a simplicidade dos Pastorinhos é uma provocação para as correntes da época, por ser gente tão simples, do ponto de vista social, a chamar a atenção para dimensões que a própria teologia e a própria Igreja pareciam esquecer. É dos simples que vem o apelo ao essencial, como Jesus dizia. Por isso, é natural que sejam os mais simples aqueles que conseguem encontrar o verdadeiro sentido do Evangelho. Podemos achar, muitas vezes, que as formas e a linguagem com que é transmitida a experiência falhe em erudição, em cultura teológica, mas falamos de uma época em que a cultura teológica chegava a muito pouca gente, em Portugal. Aliás, até hoje Fátima não tem tido os intérpretes teológicos que façam, de facto, a interpretação dessa experiência simples, mas essencial, que gente que está disponível para Deus é capaz de ter. E – A Igreja tem medo destas manifestações? CA - A Igreja é cautelosa, porque todo o fenómeno religioso é complicado, podendo dar azo a falsificações. Por isso é que espera, avalia o que acontece e poder declarar credível determinadas aparições, por exemplo. Por outro lado, a Teologia é mais racionalista e pode não captar estes sinais simples. E – Fátima é aproveitada como um fenómeno devocional, mas sente-se um esquecimento pela Teologia... CA - O problema é que não havia em Portugal, a Faculdade é recente, os estudos aprofundados são recentes e, por isso, é há pouco tempo que se começa a reflectir sobre Fátima a um nível mais profundo. A Fátima têm faltado historiadores – há muitos livros polémicos, mas não há uma história de Fátima – e falta uma Teologia, apesar de algumas iniciativas recentes. Espero que Enciclopédia, que sairá em breve, seja mais um contributo para uma leitura teológica do fenómeno de Fátima. É fundamental que a Documentação esteja disponível, daí a existência do grupo a que eu presido, que está a publicar documentos. Depois é preciso fazer a história a partir desses documentos. E – Ficamos a perder pelo facto de a Irmã Lúcia ter escolhidos uma Congregação de clausura? CA - Acredito que essa escolha tenha tido a ver com uma questão de prudência, para encontrar um ambiente propício à sua reflexão, bem como a um certo recato perante todo o conjunto de pessoas que queria falar com ela. Logo desde a segunda ou terceira aparição, os Pastorinhos eram abordados por toda a gente, com pedidos a Nossa Senhora. E – Que imagem fica dos testemunhos a respeito da Irmã Lúcia? CA - Quem conviveu de perto com ela define-a como uma pessoa afável, com grande sentido de humor, muito organizada – já desde menina organizava festas de outros miúdos – e uma excelente conversadora, o que certamente permitiu que ela descrevesse muito bem o que ocorreu na sua experiência. E – Como se compreende este fenómeno de popularidade e mediatização após a morte da figura da Irmã Lúcia? CA - Bem, esses são os fenómenos que nos fazem pensar e perceber como os testemunhos de Deus ainda são tão necessários. Alguém que, na simplicidade da sua vida, não fez grandes obras sociais, mas viveu num Mosteiro, mostra que há uma grande aspiração por sinais vivos de Deus, quem comungue com Ele. A Cova da Iria foi fundamental para perceber que Deus é maternal, é misericórdia, se preocupa connosco. Os Santos têm essa missão e não é preciso esperarmos por uma declaração especial para confirmarmos que determinada figura são, para nós, santas. Quanto à declaração oficial da Igreja, será preciso esperar, com calma, pelo desenrolar do processo. Dossier AE • Irmã Lúcia


Pastorinhos de Fátima