Lei da Separação foi arma de arremesso contra a Igreja
As mudanças ocorridas sequência do 5 de Outubro de 1910 estenderam-se, naturalmente, à vida da Igreja. Ajudar a perceber esses dinamismos é um dos objectivos da obra do Cónego João Seabra.
As mudanças ocorridas sequência do 5 de Outubro de 1910 estenderam-se, naturalmente, à vida da Igreja. Ajudar a perceber esses dinamismos é um dos objectivos da obra “O Estado e a Igreja em Portugal no Início do Século XX. A Lei da Separação de 1911”, do Cónego João Seabra (Principia, 2009).
Em entrevista à Agência ECCLESIA, este especialista recorda que muitos sacerdotes foram presos e deportados para fora das suas paróquias. Bispos e padres foram espoliados dos Paços e casas paroquiais, muitas igrejas foram fechadas.
Sacerdote desde 1978, o Cónego João Seabra possui formação académica em Direito pela Universidade de Lisboa, em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa e em Direito Canónico pela Universidade Pontifícia de Salamanca. A sua obra de doutoramento foi apresentada em Janeiro de 2008, na Faculdade de Direito Canónico da Universidade Pontifícia Urbaniana, sob o título “A Lei Portuguesa da Separação do Estado das Igrejas de 20 de Abril de 1911”.
Agência ECCLESIA (AE) – Que separação se verificou efectivamente com a legislação de 1911?
Cón. João Seabra (JS) – A situação jurídica da Igreja Católica antes de 1910 era a de uma Igreja oficial num Estado confessional. Isso tinha consequências: por um lado, de protecção à religião oficial do Estado; por outro, de pretensão do Estado de um poder concreto sobre a Igreja que se manifestava em muitas coisas – era o Rei que nomeava os Bispos, embora tivessem de ser aprovados pela Santa Sé (às vezes o governo não conseguia nomear os Bispos que queria, mas a Santa Sé nunca conseguia nomear um Bispo que o governo não quisesse), era o governo que nomeava os párocos e provia à sua sustentação, as paróquias eram circunscrições eclesiásticas e civis…
Havia uma mistura entre o Estado e a Igreja que, evidentemente, trazia grandes desvantagens para ambos. Nesse sentido, a Lei da Separação é de separação: os párocos deixavam de fazer parte das juntas de freguesia, de exercer funções civis na vida social e política, os Bispos deixavam de ser nomeados pelo Governo. O Papa pôde, quando houve condições propícias, nomear Bispos sem qualquer interferência do Estado.
AE – A Lei previa essa situação?
JS – Não é que a Lei da Separação deixasse fazer isso, mas porque não se respeitou o artigo 95.º, que autorizava que se mantivessem em funções cultuais os Bispos e párocos, nas catedrais e igrejas do Estado, mas que o novo Bispo ou o novo pároco tinha de apresentar um requerimento ao Ministério da Justiça para poder entrar em funções. É a não apresentação desse requerimento que consubstancia a verdadeira separação entre a Igreja e o Estado. Claro que o Estado fez a sua parte, não nomeando Bispos, mas cria um sistema onde mantinha o controlo sobre a nomeação dos mesmos. Esse controlo não se efectivou porque a Igreja não obedeceu a essa determinação, o que se repetiu em relação a inúmeros capítulos
AE – Que outros exemplos é possível dar?
JS – Na Lei da Separação, o culto está entregue a umas comissões que o Ministério da Justiça controla, mas a Igreja recusou aceitar as “cultuais”. Os párocos ficam todos estipendiados numa lista nacional de pensões, a funcionar no Ministério das Finanças, mas recusaram-se a receber essas pensões. Há muitas coisas na Lei que tornariam a Igreja completamente submetida ao Estado e só não ficou assim porque adoptou uma prática de desobediência civil, de resistência activa e passiva. O decreto de Moura Pinto, em 1918, no governo de Sidónio Pais, acabou por dar forma jurídica à situação de facto, que se tinha criado.
AE – A questão de fundo nunca foi, então, a exigência do regresso a um estatuto anterior?
JS – É muito importante para compreender o conflito que aconteceu perceber que a Igreja, os Bispos, não pretendiam a manutenção do estatuto da religião de Estado – embora pudesse haver, entre os Bispos, algum mais idoso ou mais ligado à monarquia que achassem que o melhor era ter a Igreja ligado ao Estado -, não era essa a mentalidade dominante. Aparecem mesmo antes da publicação da lei várias pessoas a desejar a separação, mas que fosse o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja, com respeito pela liberdade eclesiástica, não uma escravização da Igreja ao Estado.
AE – Pode haver tendência para desvalorizar o impacto real da Lei da Separação na vida da Igreja?
JS – Como escrevo no meu livro, a maior parte das pessoas que se referem à essa lei nunca a leu. Dos que a viram e folhearam, a maior parte viu os primeiros quatro artigos: liberdade, separação, que ninguém pode perseguir por causa de convicções religiosas, a República não reconhece nenhum culto. A maioria fecha a lei no artigo 4.º, pensando que os conflitos do passado devem ter sido culpa da intolerância da Igreja, mas não é disso que se trata. Trata-se de uma lei de perseguição religiosa, uma perseguição feroz, violenta, que fez sofrer muitíssimo Bispos e padres, que prejudicou a evangelização e que tinha como objectivo, consciente e assumido, a extinção do catolicismo.
AE – Esta agressão externa acabaria por promover a unidade no interior da Igreja...
JS – Nós não devemos iludir-nos com os efeitos da perseguição: as perseguições fazem mal, a Igreja ficou muito mal-tratada na perseguição republicana. Dezenas de casas religiosas foram extintas, algumas congregações que se tinham restaurado com muita dificuldade, a seguir ao Liberalismo, não mais voltaram e perdeu-se um património eclesiástico muito grande que nunca foi devolvido inteiramente- o que implicou durante o século XX um esforço hercúleo de construção, sacrificando gerações de padres. Perdeu-se também muita vida católica associativa.
Claro que se ganhou uma certa unidade, porque havia dispersão do episcopado e alguma divisão no clero. A perseguição uniu os Bispos, deu-lhes hábitos de confronto, de unidade e de entreajuda, ensinou-lhes uma lealdade recíproca e uma unidade com o Santo Padre. A ajuda do Papa – concreta, também em dinheiro para ajudar a manter a vida da Igreja – foi importante para consolidar essa unidade.
Os Bispos do constitucionalismo monárquico, por outro lado, não eram propriamente pastores dos seus padres, mas figuras públicas. Durante a perseguição, os Bispos vieram a revelar-se grandes pastores, pensemos em D. Manuel Vieira de Matos, D. António Barbosa Leão, o Cón. Manuel Luis Coelho da Silva, que depois foi Bispo de Coimbra, o Cón. José Alves Matoso, depois Bispo da Guarda. Homens que foram realmente líderes dos seus padres.
AE – Neste conflito com os republicanos, os Bispos sacrificam a questão do património por causa de outros valores que consideram mais importantes...
JS – A Lei da Separação espoliava a Igreja, mas concedia gratuitamente, em utilização, as igrejas e catedrais que fossem necessárias para o culto - embora todos os bens da Igreja passassem para o Estado -, cinco seminários (Braga, Porto, Coimbra, Évora e Lisboa, em São Vicente de Fora – note-se que ali não funcionava um seminário desde 1905) e concedia aos Bispos e padres a utilização de paços e casas paroquiais que fossem necessárias para a habitação. Também é verdade que dizia que era apenas o estritamente necessário, mandando ocupar a outra parte por serviços públicos, e não assegurava vivedoria aos sucessores.
Ainda assim, poderia ter-se tido como prioridade salvar essa parte do património, mas para manter na posse dos Bispos e dos párocos essas partes dos paços episcopais e das casas paroquiais que a Lei da Separação lhes concedia, a lei punha como condição que os eclesiásticos não tivessem incorrido na pena de privação dos benefícios materiais concedidos pelo Estado.
Ora, isso significava que os Bispos e padres que não aceitassem as cultuais, que não aceitassem as pensões perdiam, necessariamente, o paço episcopal e a casa paroquial. Isso é uma coisa muito pesada: quando os Bispos fazem a sua pastoral, em 1911, dizendo que não se podem aceitar as cultuais, sabem que vão ficar sem paço episcopal; quando os párocos obedecem à pastoral do Bispo, sabem que vão perder a casa paroquial – estamos a falar de homens de idade, que vivem há 30 anos numa casa ampla, confortável, que têm lá o pai e a mãe e que ficam sem casa de um dia para o outro. Isto aconteceu de Norte a Sul do país, para não ceder na libertas ecclesiae, na liberdade de Igreja.
O que estava em causa era uma forma de governo eclesial contrária à doutrina da Igreja e uma forma de remuneração do clero que o punha sujeito ao Estado. Para não aceitar estas duas coisas, para não abdicar da liberdade, a Igreja abdicou do património.
AE – Tratava-se mais de uma lei de sujeição do que de separação?
JS – A separação quer dizer coisas diferentes. Normalmente usamos a expressão para nos referirmos ao sistema norte-americano, onde desde o primeiro instante houve jamais uma religião de Estado. Esta separação é acompanhada por um grande respeito pela experiência religiosa, pelo reconhecimento da individualidade e da existência das comunidades. Neste sentido, a doutrina católica foi aceitando que um Estado estivesse separado da Igreja, nesta situação, e ficou configurada com Leão XIII, com a doutrina da tolerância, do ralliement.
A segunda lei da separação relevante, que é a lei brasileira (1890), que também surgiu num momento de convulsão política, reconhecia a personalidade jurídica da Igreja, a validade do casamento católico para efeitos civis, mantinha integralmente o património eclesial.
Havia muitas modalidades jurídicas, nos vários sistemas, de leis de separação nas quais a Igreja não era perseguida. O modelo de Afonso Costa é o modelo da separação francesa, que é uma lei de sujeição da Igreja ao Estado.
Por isso vale a pena perceber bem o que quer dizer a separação, porque nós imitamos a França, em pior. Nos EUA, quando foi assinada a Declaração de Independência, em Filadélfia, o Mayor da cidade deu uma festa, que incluía uma mesa com comida kosher, para que todos os judeus pudessem vir. Quando, uns anos depois, Napoleão quis estender o regime da Concordata a todas as religiões, convocou uma reunião com os membros do Grande Rabinato de Paris e a reunião foi marcada para o Sábado.
Estes dois episódios dão a diferença do que quer dizer a separação: num caso, o Estado respeita a natureza da experiência religiosa, deixa que as religiões sejam como são; no caso francês, o Estado impõe uma sua maneira de ver o mundo – a ética republicana de que agora tanto se fala – e as religiões têm de se sujeitar à visão que o Estado tem da religião, porque o Estado sabe como é que as religiões devem ser, ele é que diz como é que se organizam. Esta foi a mentalidade em que Afonso Costa pegou, transformando a Lei da Separação numa lei de perseguição à Igreja.
AE – É importante perceber essa mentalidade, observar a realidade a partir da vivência própria dos inícios do século XX?
JS – Nós temos dificuldade em perceber até que ponto é que o anticlericalismo ideológico parecia legítimo aos republicanos. Para eles era absolutamente claro que a religião era uma coisa má, portanto proibir, perseguir e dificultar a religião era uma questão cívica, não havia nada contra a liberdade em impedir a superstição, como eles diziam. É como se a promoção da religião fosse uma actividade ilícita, que devia ser combatida por todos os meios e todos os meios eram legítimos.
AE – Mas essa leitura escapa às análises que se fazem sobre esta matéria?
JS – Afonso Costa e a República não pretendiam separar-se da Igreja, pretendiam dominar a Igreja e esse seu intento falhou completamente. Basta ler da pena de Brito Camacho, um homem insuspeito, um republicano de sempre, que fez parte do governo provisório e votou a Lei da Separação. No decreto de Moura Pinto (1918), que reviu a Lei da Separação, há um longo relatório de Brito Camacho, que faz aí um juízo da lei – é um juízo intrarepublicano, não um juízo eclesiástico, de um inimigo da Igreja -, afirmando que a mesma foi feita para impor sectariamente uma leitura do que é a religião, contra a liberdade, que impunha à Igreja uma forma jurídica completamente incompatível com a sua natureza. Isso tinha provocado um problema social gravíssimo em Portugal que importava ao legislador republicano resolver.
Opiniões contrárias a isto nascem da ignorância, da falta de informação ou da deliberação ideológica. Oliveira Marques, que é um homem que sabe o que escreve, diz que a Lei da Separação é o acto mais revolucionário da República, porque a Igreja ficava sujeita ao povo como nunca estivera ao longo da história. Sem o dizer, mostra claramente que ele também tem consciência que é uma lei contra a Igreja, não para a separação, de uma forma ordeira e pacífica.
AE – A celebração do Centenário da República é uma oportunidade para abordar em profundidade este episódio da história da Igreja?
JS – Há uma certa tendência na historiografia da Igreja para contar a história tentando perceber a posição do adversário. Conta sempre a história das perseguições como se nós, no fundo, tivéssemos alguma culpa, porque nós é que nos explicámos mal. É uma ideia de que se nós nos explicarmos bem, eles vão perceber. O problema da perseguição à Igreja não é uma questão de mal-entendidos. Quando não se parte desse pressuposto, não se percebe nada.
Centenário da República