À conversa com... Pe Vítor Melícias, Presidente da União das Misericórdias Portuguesas
VP - Como avalia a posição e intervenção das Misericórdias em Portugal?
Pe. Vítor Melícias (VM) – A experiência de quase quarenta anos de trabalho directo nas várias instituições do terceiro sector, assim as de expressão sobretudo económica ou social como as humanitárias e de solidariedade, de que são bons exemplos as mutualidades, associações e organizações de bombeiros e de protecção civil, montepios e caixas económicas, deram-me um conhecimento e amor a este importante sector da sociedade que me permitem considerar como imprescindíveis e de grande futuro quer as potencialidades de todo o sector, quer, neste caso concreto, das tão portuguesas Misericórdias ou Santas Casas, como o povo se habituou desde sempre a designá-las.
De facto, as Misericórdias, de tradição e história tão ricas que, como disse Alexandre Herculano, “não se pode escrever a História de Portugal sem as Misericórdias”, são hoje, com renovado vigor e profundo sentido de modernidade, uma das instituições da sociedade civil organizada com maior capacidade de adaptação e de resposta aos novos desafios das políticas sociais e de economia social e solidária que os novos tempos e novas necessidades sociais exigem. É muito positiva a acção das Misericórdias e será seguramente muito positivo tudo o que a comunidade nacional, nas suas diversas vertentes, fizer para que elas continuem a ser o grande instrumento da solidariedade social dos portugueses.
VP - Podia falar-nos um pouco sobre as Misericórdias, para esclarecer quem desconhece a sua realidade, objectivos e dinâmicas?
VM – Sim. O espaço é curto para realidade tão rica e diversificada. Mas toda a história, mística e acção polivalente das Misericórdias podem traduzir-se pelas palavras que S. Francisco Xavier, cujo 5º centenário de nascimento estamos a celebrar, dirigiu de Goa a S. Inácio de Loyola em 1542: “Haveis de saber que nesta terra e em todos os mais lugares de cristãos, há uma companhia de homens muito honrados, que têm cargo de amparar toda a gente necessitada, assim os naturais cristãos como os que novamente se convertem. Esta companhia de homens portugueses se chama a Misericórdia; é coisa de admiração ver o serviço que estes homens bons fazem a Deus Nosso Senhor em favorecer todos os necessitados”.
É precisamente este sentido de polivalência e vocação para socorrer toda a espécie de necessitados, ou seja, para praticar todas as 14 Obras de Misericórdia em relação a quem quer que necessite, que faz com que as Misericórdias, que hoje são 398 em Portugal, se tenham difundido e continuem a difundir-se em todo o mundo lusófono com actividades tão variadas como hospitais, farmácias sociais, caixas económicas, lares e centros de apoio a idosos, crianças e jovens sucedâneos das antigas Rodas dos Expostos.
Ainda a semana passada, a 3 de Março, foi criada e publicamente apresentada a Misericórdia de Fátima-Ourém, última das que nos países lusófonos, como Díli, Maputo e Cabinda, ou nas diásporas da lusofonia, como Paris e Luxemburgo, recentemente se criaram.
Este é um movimento que, mais do que pela sua gloriosa história, tem promissor futuro se soubermos garantir-lhe a sua natureza de instituições comunitárias, localizadas mas de matriz universal, que envolvendo a participação activa de todos os sectores realizam o verdadeiro sentido de parceria que desde sempre, embora com altos e baixos que a história explica mas não legitima, têm realizado exemplar parceria entre o Estado, a Igreja e a Sociedade Civil.
Infelizmente em alguns momentos da história ou, nuns casos, zelosos agentes dum Estado centralizado e funcionalizante, ou, noutros, nervosos eclesiásticos de formação e preocupações mais clericais do que eclesiais têm perturbado a desejável e imprescindível harmonia da cooperação entre os vários parceiros ou participantes corresponsáveis da mesma realidade, que é de toda a comunidade e a toda ela se dirige.
Acredito que uns e outros, prosseguindo esforços de cooperação, atendam mais aos fins e participação conjugada de todos nas Misericórdias de que aos poderes e direitos que erradamente julgam nelas existirem ou delas emanarem.
VP - Passando ao tema da actualidade religiosa, que reflexão tece à Encíclica Papal “Deus é Amor”?
VM – A encíclica “Deus charitas est” vem na linha do mais recente magistério pontifício, designadamente no sentido de a nova evangelização ser regida e motivada por aquilo que Paulo VI e João Paulo II, com pertinente felicidade, chamaram de “Civilização do Amor” e “Cultura da Caridade” ou “Cultura da Solidariedade”.
É extremamente oportuno que como primeiro pronunciamento em forma de encíclica ou carta dirigida a todos os crentes e (implicitamente ainda que não referido) a todos os homens de boa vontade, como era de tradição recente mas já firmada fazer-se, o Papa comece o seu pontificado reafirmando que a prioridade de enquadramento da evangelização nos nossos dias e para o futuro do milénio ora nascente são precisamente os valores do amor, ou seja, da caridade e, portanto, da solidariedade, como estruturantes de uma nova civilização, que urge e que o acelerado processo de globalização em curso exige, muito mais num tempo que necessariamente será de pluralismo e de multiculturalidade, num mundo plurirreligioso, pluricultural e de unidade nas diferenças.
Este amor, que urge, não pode, como magistralmente escreveu João Paulo II na sua preciosa Solicitudo Rei Socialis, resumir-se a ser “um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum”. Até porque “a solidariedade é indubitavelmente uma virtude cristã, sendo numerosos os pontos de contacto entre ela e a caridade”.
É neste sentido, sobretudo, que esta brilhante e oportuna encíclica de Bento XVI deve ser lida: a paz, que é possível e urgente, obtém-se pela construção de uma civilização e de uma nova ordem mundial assente na justiça da solidariedade, mais que na justiça dos direitos “definidos” e “adquiridos” por interesses económicos, financeiros e comerciais de pessoas, grupos, sociedades ou nações. A casa comum da humanidade, hoje localizada a nível global, carece de outros alicerces e, portanto, de uma palavra nova de esperança, de um novo evangelho do tipo daquele que, na patrística, os antigos Doutores da Igreja definiram com os conceitos e a mensagem que a moderna Doutrina Social da Igreja define como Solidariedade, Subsidiariedade, Destino Universal de todos os Bens.
VP - Que grandes novidades e fortes características nos traz esse documento que já não estivessem presentes na Sagrada Escritura, assim como nos escritos patrísticos e hagiógrafos?
VM – A maior novidade é dizer em termos de hoje e com fundamentação de sempre as verdade de ontem com fito no amanhã. Oportuna e clara, esta encíclica merece ser reflectida e vertida em linguagem e programas de amor concreto com dimensão social concretizável.
VP - De que forma olha e sente estes acontecimentos relativos às publicações caricaturais de Maomé e consequentes ondas de violências?
VM – Sinto-os e sigo-os com a preocupação de quem vive intensamente a globalização, por um lado, com fortes críticas ao tipo de globalização em curso e, por outro, com urgentes apelos e determinado envolvimento no sentido de que ela mude de prioridades e cresça na base da universalização, eficaz, do respeito pela dignidade e direitos de todos os seres humanos e da natureza sua mãe e sua irmã.
Ora se isto exige o reconhecimento e eficaz garantia de todos os direitos, exige correlativamente um grande sentido de respeito pelos direitos, convicções e pessoa dos outros. O que faz com que não haja direitos absolutos. Todos têm uma natureza e dimensão social, pelo que a própria hierarquia de valores subjacentes a todo e qualquer direito, a começar pelos direitos fundamentais, deve condicioná-los no seu exercício, ao direito e aos valores dos outros.
Penso, pois, que assim como não se podem usar os direitos com “abuso de direito”, também tem que se ter um profundo sentido de responsabilidade social no exercício de qualquer direito, a começar, hoje, pelo de expressão e comunicação social, aliás em processo de globalização tão descontrolada. A “aldeia global” tem de ser a da convivência e da paz social não a do pátio das guerras e mútuas provocações. Os direitos e liberdades não se perdem, antes se reforçam, por serem usados com moderação e bom senso. Caso contrário, deixam de ser direitos, porque é para a paz social e o bem comum que eles existem, são reconhecidos e devem ser garantidos. Neste caso nem o uso indiscriminado das caricaturas nem as reacções de violência têm qualquer sentido ou utilidade. Cessem um e as outras.
VP - Far-nos-á isto pensar, de futuro, na liberdade de expressão, com tudo o que implica, assim como na aceitação pacífica da caracterização informativa da liberdade de imprensa?
VM – imprensa e toda a comunicação social, até para não a perder, devem aprofundar o sentido de responsabilidade social do uso e exercício deste seu direito fundamental e imprescindível. Trata-se de um direito que só é seu por ser de todos e mais ao serviço de todos do que dos seus próprios agentes. Moderem-se para que não tenha que ser a própria natureza e finalidade das coisas a moderá-los.
VP - Quanto ao acontecimento eclesial nacional mais recente, a trasladação do corpo da Ir. Lúcia para o Santuário de Fátima, que leitura faz desta demora de 1 ano, assim como o processo vindouro duma possível Beatificação?
VM – Não creio que houvesse qualquer demora. Julgo que o prazo correspondeu à vontade da própria Lúcia e dos familiares e da família religiosa em que estava integrada. Já quanto ao processo de beatificação, embora sabendo que outras pessoas pensam e pressionam de modo diverso, julgo que não há nenhuma vantagem nem deve haver pressa em concluir o processo.
A santidade não se esgota nem se perde por levar mais ou menos tempo a ser proclamada.
Neste caso concreto, até porque os escritos da Irmã Lúcia devem constituir uma peça central e essencial em toda a apreciação, também teológica e pastoral, dum dado processo canónico, tal como a rigorosa análise de eventuais curas alegadas como miraculosas, penso que só haverá vantagem, designadamente para o apuramento teológico e eclesial da própria mensagem, que os factos não sejam pressionados muito menos por manifestações colectivas provocadas, conduzidas ou controladas por uma mediatização massificada motivadora de emoções colectivas. O Beato Nuno está há tantos séculos para ser canonizado… Se lá nos altos Céus a Irmã Lúcia desse uma mãozinha já seria mais uma peanha para o seu altar e gáudio de muitos portugueses.
Entrevista de André Rubim Rangel