Novos caminhos para o património
Sandra Costa Saldanha, directora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, fala à Agência ECCLESIA sobre os diversos projectos que este organismo tem em mão
Sandra Costa Saldanha, directora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, fala à Agência ECCLESIA sobre os diversos projectos que este organismo tem em mãos, alertando para casos de “vida ou de morte” na conservação do património, apresentando como caminho quatro verbos: “Tratar, cuidar, preservar e valorizar”.
Agência ECCLESIA – Que lugar ocupam os Bens Culturais na dinâmica da pastoral da Igreja?
Sandra Costa Saldanha – Os Bens Culturais continuam a ocupar um lugar de grande importância no ponto de vista pastoral, nomeadamente porque há beleza dos objectos está, desde logo, directamente associado o seu poder de catequese. Estes objectos podem continuar a exercer esse papel porque é um património que está muito arreigado nas comunidades. Estas sentem muito os Bens Culturais, como algo muito associado às suas dioceses.
AE – E valorizam esse património?
SCS – Para além do papel pastoral que desempenham, os Bens Culturais são também um património vivo que precisa de ser valorizado e, sobretudo, preservado. No entanto, nalguns casos a sobrevivência destes objectos está em risco. Muitas vezes, a boa vontade das comunidades na sua preservação faz com que nem sempre sejam tomadas as medidas mais correctas. Têm boa vontade, mas faltam-lhe qualificações próprias para o seu tratamento.
AE – Como foi possível que este património chegasse a tal estado de degradação?
SCS – Existem muitos problemas no património cultural português e o património da Igreja não é uma excepção a esse nível. Em muitas circunstâncias, este problema coloca-se pela falta de recursos, mas também pela incúria devida à falta de formação. As noções de carácter preventivo são fundamentais e importantes nestas comunidades.
AE – Perante tal realidade é conveniente agir com rapidez. É urgente o lado formativo.
SCS – É fundamental uma concertação maior em termos do ensino e da formação. Ao nível do ensino, as instituições mais directamente ligadas à Igreja deviam exercer um papel mais activo na formação dos seus agentes, nomeadamente dos futuros sacerdotes. Durante o período do seminário deviam ter horizontes mais alargados nestas matérias.
O Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja colocou a formação como área prioritária. Estamos a falar de algo que precisa de uma intervenção urgente e qualificada. Na última reunião da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais foi aprovada a abertura de uma «nova pasta» para o secretariado: está a ser constituído um grupo de trabalho para a área da conservação e restauro.
Não encontraremos solução para todos os problemas – nem é esse o papel do secretariado -, mas com este grupo de trabalho pretende-se, essencialmente, abrir um novo caminho e dar novas indicações e orientações.
AE – Normas gerais que possam ser seguidas pelas comunidades.
SCS – Exactamente. Nesta perspectiva da conservação e restauro, o grupo será constituído pelas principais instituições nacionais ligadas à área, não só da parte da Igreja, mas também do lado do Estado e de alguns particulares.
AE – Esse grupo de trabalho terá objectivos específicos.
SCS – Em primeiro lugar há um aspecto que é extremamente importante, a aplicação da legislação em vigor no que toca à conservação dos Bens Culturais. Algumas vezes, por desconhecimento a legislação não é aplicada. O grupo de trabalho irá providenciar, com a maior brevidade, uma espécie de dossier com a legislação, formulários e procedimentos.
Recentemente, assinou-se um acordo com o Instituto de Museus e Conservação (IMC) e pretendemos ter alguns benefícios. No âmbito desse acordo, o Secretariado Nacional vai passar a fornecer às dioceses um serviço fundamental, visto que o IMC disponibiliza-se a prestar apoio técnico. As comunidades podem-nos submeter processos de restauro que serão depois devidamente apreciados pelo IMC.
AE – Mas já existe o «Vade-mécum» com conteúdos sobre a preservação do património histórico e artístico das igrejas.
SCS – Já existe, mas deverá ser disponibilizado às dioceses. Essa distribuição acontecerá, paralelamente, com a realização de uma série de acções de formação. Em 2011, para além da constituição do grupo técnico, realizaremos, em colaboração com o IMC, um conjunto de acções de formação centradas, fundamentalmente, na conservação preventiva. Não pretendemos fornecer uma formação de carácter técnico a quem lida com este património, mas, essencialmente, fornecer ferramentas técnicas de carácter preventivo.
AE – Concretamente, destinam-se a quem?
SCS – A todos os que estão em contacto permanente com o património das Igrejas, nomeadamente, os párocos, zeladores, sacristães, membros de comissões fabriqueiras e voluntários. Todo o público que lida directamente com esta área. Serão ministradas pelo IMC e estão previstas quatro acções, deslocalizadas geograficamente, para poder abranger o máximo de paróquias e dioceses. Dar-se-ão indicações, por vezes primárias, mas que são elementares.
AE – Ainda estão na fase das indicações primárias?
SCS – Algumas pessoas continuam a não saber lidar com o seu património. É por aqui que, rigorosamente, temos de começar. Há muitas pessoas que não sabem acondicionar um paramento ou limpar uma peça de ourivesaria.
AE – Na maioria das vezes, essas tarefas são executadas pelas «velhinhas» bondosas da paróquia.
SCS – São essas senhoras que vão receber esta formação, tal como os outros elementos das paróquias. Isto ao nível primário, mas também existem situações – algumas têm chegado ao SNBC – de alguns párocos que têm alguma verba disponível para fazer um restauro em determinada peça, mas não sabem a quem recorrer. Nestes casos recorremos ao grupo técnico que fornecerá a legislação e um directório de conservadores e restauradores habilitados e creditado à luz dessa legislação para intervir no património e nos bens culturais.
AE – Quem quiser recorrer ao acordo do IMC o que terá de fazer?
SCS – Iremos fornecer e explicar esses procedimentos. A paróquia que tiver uma peça a necessitar de restauro deverá solicitar ajuda e o IMC analisa os pareceres técnicos que os conservadores/restauradores darão.
AE – Esta etapa pressupõe que todos os bens estão inventariados. Se tal não acontecer, a paróquia pode enviar para restauro um Santo António do século XVII e receber restaurado um Santo António do século XIX.
SCS – Sabemos que os párocos são extremamente assediados por todo o tipo de conservadores/restauradores ou pseudo conservadores/restauradores. Para que tal não aconteça, o Secretariado Nacional dos Bens Culturais terá um papel mais activo. Vamos explicar como as coisas devem ser feitas e oferecer a possibilidade das pessoas terem apoio técnico.
AE – A questão da conservação e restauro é uma das grandes prioridades.
SCB – É urgente. É uma questão de vida ou de morte. Estamos a falar de acervos que estão em risco. Só que, muitas vezes, a boa vontade acaba por complicar mais a situação: em vez de um bom restauro faz-se uma intervenção perigosa que põe em causa a integridade do objecto.
AE – E os arquivos passaram para segundo plano?
SCS – Não. Relativamente aos arquivos e a outras áreas que foram iniciadas em anos anteriores vão ter continuidade. Em 2009, foi dedicado um Conselho Nacional à área dos arquivos de onde saíram várias orientações. Nesse sentido, dia 7 de Dezembro, far-se-á a Jornada Nacional sobre os arquivos diocesanos. Actualmente, está concluído um projecto de diagnóstico que será lançado nesse dia. Não podemos fazer nada sem auscultar primeiro e sem conhecer a realidade.
AE – Mas existem dioceses que já estão a trabalhar nesta área.
SCS – É verdade. Mas essa realidade não é a dominante. O que sentimos é um grande problema na área dos arquivos. Esta área e a do livro são uma espécie de património invisível.
AE - É invisível, mas está ali a memória e a identidade de um povo.
SCS – Sim, mas as preocupações, de um modo geral, não se encaminharam muito para essas áreas. É um património que está em risco e necessita de ser intervencionado. Precisa de um intervenção executiva e concreta.
AE – Se silenciamos os Bens Culturais corremos o risco de eles desaparecerem.
SCS – Se os silenciamos e com a degradação que eles têm, nunca mais vão poder cumprir o seu papel pastoral. Se queremos reanimá-los como veículos pastorais, primeiro temos de os tratar, cuidar, preservar e valorizar.
AE – Na linha da preservação, a área da biblioteca e do livro tem tido progressos visíveis.
SCS – Está um pouco mais avançado em relação à área dos arquivos. No entanto, o Secretariado Nacional programou três acções importantes para o próximo ano. O meu antecessor, João Soalheiro, promoveu um encontro nacional sobre este tema e lançou um inquérito a todas as bibliotecas eclesiásticas. Já sabemos os resultados.
AE – Pode avançar com alguns dados recolhidos?
SCS – Existem resultados muito curiosos e interessantes. O número aproximado de obras que constituem os acervos bibliográficos – impressos em volume – corresponde sensivelmente a 20 mil exemplares em média. As áreas temáticas mais representadas são: Teologia e História. No âmbito cronológico, estas concentram-se entre o século XVIII e o XXI.
AE – E o estado de conservação dessas colecções?
SCS – Em 74% dos casos, 10% dos arquivos precisam de restauro a médio prazo. Existem problemas que estão devidamente identificados e quantificados.
AE – Voltando às acções para o próximo ano
SCS – O II Encontro nacional já está marcado. Será a 25 de Março, no Seminário do Porto e contará com a presença de Cardeal Rafael Farina, o bibliotecário arquivista do Vaticano. Iremos também criar uma espécie de portal das bibliotecas do nosso país para divulgar e dar a conhecer estes conteúdos. Inicialmente, este portal começará com dez bibliotecas e contaremos com o apoio, do ponto de vista técnico, da biblioteca da Universidade Católica Portuguesa. No encontro do Porto iremos também dedicar algum tempo a acções de formação sobre preservação e catalogação. Como funcionamos muito por contágio, temos de ter alguns bons exemplos que motivem os outros a fazer.
Ainda neste âmbito das bibliotecas e do livro iremos fazer uma exposição bibliográfica que terá por título «Os 70 magníficos», a decorrer em Coimbra, a partir do mês de Maio. Uma iniciativa que será comissariada por D. Carlos Azevedo e conta com a coordenação executiva do grupo técnico desta área. As obras serão provenientes das instituições eclesiásticas.
AE – Este é um evento que sai do âmbito formativo?
SCS – Pretendemos mostrar algumas obras notáveis que vêm destas instituições e promover a sua valorização. É algo que se alarga a um público mais vasto.
AE – A área dos Bens Culturais é muito abrangente, mas existe um «filho», Projecto da Rota das Catedrais, que merece uma atenção especial. Está em que fase?
SCS – A Rota das Catedrais sofre, finalmente, algumas evoluções. Depois do trabalho invisível começam a aparecer os resultados. Existe um relatório que dá conta do estado e do ponto da situação de todas as catedrais.
Até ao final de 2010 e em colaboração com as Direcções Regionais de Cultura serão elaborados os projectos. Um trabalho moroso, mas de extrema importância para que em Janeiro de 2011 – quando as candidaturas abrirem – tudo entrar e ser encarrilado. Aquilo que sei é que todas as direcções regionais de cultura estão em estreito contacto com as catedrais das suas zonas. São situações muito desiguais. Existem catedrais com muitas necessidades e outras com menos.
AE – Intervenções que envolvem muitos milhões
SCS – Envolvem, mas é uma oportunidade única que não se pode perder. Todo o trabalho silencioso feito até agora foi importantíssimo porque de um bom projecto poderá resultar uma boa execução. Quem não fez este trabalho, não está no comboio. Sabemos também que não existe das direcções regionais de cultura nenhuma especial preocupação porque estão, perfeitamente, reconhecidas as necessidades.
Por outro lado, a Rota das Catedrais já tem logótipo que será anunciado brevemente e o site do projecto será inaugurado em Janeiro do próximo ano.
AE – Uma forma de dar visibilidade ao projecto?
SCS – Começa a acontecer a partir de Janeiro. Estão também algumas iniciativas programadas como a elaboração de roteiros para todas as sés. Um projecto que conta com um apoio muito importante do Instituto de Turismo da Portugal em vista à promoção de materiais promocionais destes monumentos.
Para além de um roteiro por cada catedral far-se-á também uma publicação monográfica em três línguas. Tem um papel de difusão, mas de carácter científico também. Falar de um rota implica falar de algo uniforme…
Está também agendada a exposição «Rota das Catedrais». Será em Lamego, no Museu diocesano, e decorre dos finais do mês de Abril até ao mês de Julho. A exposição pretende ilustrar as catedrais de Portugal e contará com uma peça de cada uma delas. O comissário científico já escolheu todas as peças.
AE – A escolha de Lamego é para descentralizar?
SCS – Teve de ser feita em função do local e da disponibilidade de espaço. O Museu Diocesano de Lamego tem um espaço óptimo para o efeito. A exposição terá associada uma série de painéis, placards informativos de cada catedral. Eventualmente, pondera-se que essa parte da exposição possa passar a itinerante. Ao nível das peças é mais complicado porque envolve seguros e algumas estão em uso nas próprias sés.
AE – Pensam também realizar um Congresso Internacional da Rota das Catedrais?
SCS – Essa iniciativa acontece no Museu Municipal de Faro, dos dias 7 a 9 de Abril. Conta com a organização do Secretariado Nacional e a Direcção Regional da Cultura do Algarve. Teremos vários especialistas nacionais e internacionais que falarão sobre múltiplos aspectos das catedrais.
AE – O último «rebento» do Secretariado Nacional dos Bens Culturais é a Revista «Invenire». Como tem sido a sua vivência nestes primeiros tempos?
SCS – A revista «Invenire» encaixa-se numa área muito específica e foi uma aposta muito clara do Secretariado Nacional: difusão e divulgação dos Bens Culturais da Igreja. Dessa aposta, não fez parte apenas a revista «Invenire», mas também a criação de um site, de uma newsletter e a adesão a redes sociais. Com estes instrumentos, os Bens Culturais chegam a um público mais alargado.
A «Invenire» tem dois objectivos: divulgar boas práticas e mostrar alguns tesouros dos Bens Culturais da Igreja em Portugal.
AE – Destina-se mais à comunidade científica ou aos interessados nestes temas?
SCS – Fica no meio-termo. Não é em exclusivo uma revista de divulgação, mas também não é uma revista científica. A revista reserva algumas páginas para investigação e outras para a divulgação. É uma revista abrangente e eclética.
AE – Com tantas áreas, não seria conveniente dividir o Secretariado Nacional dos Bens Culturais em vários sectores através de um organigrama.
SCS – Concordo. Devia ter quatro ou cinco secções. O Secretariado Nacional tem um âmbito vastíssimo e de «coisas» que não podem esperar.
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