Entrevistas

Os desafios da comunicação digital para a Igreja

Octávio Carmo
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O jesuíta italiano Antonio Spadaro, autor da primeira entrevista de fundo ao Papa, fala sobre o exemplo de Francisco e as mudanças em curso na reflexão teológica por causa da internet

Agência ECCLESIA - Como fazer Teologia nesta era digital, qual é o desafio?

Padre Antonio Spadaro  (PA) – O desafio é o de sempre, é o de pensar a fé no mundo em que vivemos, no mundo cultural, na história em que vivemos. A internet tem hoje, certamente, um grande impacto no nosso modo de pensar, de pensar em geral. Então, dado que a Teologia é pensar a fé – na definição clássica, ‘intellectus fidei’ –, se a rede tem um impacto na forma de pensar – e a Teologia é pensar a fé -, a rede terá um impacto na forma de pensar a fé?

Esta é a pergunta que eu coloco e é o grande desafio da Igreja: a Igreja é chamada a estar onde estão os homens, hoje eles estão também na rede, pelo que a Igreja é chamada a estar também na rede.

 

AE - Esse conceito de rede significa algo mais… Estamos habituados a pensar na internet e no mundo digital como um meio, mas essa não é, neste momento, a abordagem mais adequada.

PA  – Não, não é a abordagem mais adequada, e de resto a Igreja está a mover-se neste sentido, está a dar passos. As mensagens de Bento XVI para os Dias Mundiais das Comunicações Sociais, especialmente nos últimos anos, foram muito claras: fala-se claramente do mundo digital como um ambiente, não como instrumento, e é um ambiente comum, como diz mesmo Bento XVI na sua última mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, é onde as pessoas vivem, se exprimem, pensam, criam relações.

A Igreja é, por isso, chamada não a usar a rede, mas a viver neste ambiente.

 

AE - O que é que significa também para a Igreja esta mutação, por assim dizer, para que esta rede seja verdadeiramente um ambiente de vida?

PA   – Isso significa simplesmente estar lá e estar significa viver, viver dentro. Não se pode perceber estando fora, fazendo análises.

Portanto, significa compreender como as questões religiosas, por exemplo – as perguntas de fé, também as dúvidas, as tensões, hoje também se exprimem na rede. Sabemos disso, em particular os mais jovens, no Facebook, no Twitter, com as imagens no Instagram e por aí fora.

Tudo isto se exprime aquilo que é o grande desejo do homem de viver relações mais fortes, mais autênticas. O bem, o mal, no fundo, encontram-se na rede como se encontram na vida física. Por isso, para a Igreja estar na rede significa, em primeiro lugar, escutar, ouvir o que dizem os homens, como vivem neste ambiente, quais são as tensões profundas da humanidade que emergem, sem se deixar amedrontar pelo mal, procurando também perceber o bem, procurando ter uma visão evangélica do modo como o homem se exprime hoje, inclusive no ambiente digital.

 

AE - Daquilo que é possível perceber neste mundo que está sempre em mutação, também o mundo digital tem necessidade de Deus, de rezar, de celebrar, pode dizer-se… Como compreender isto?

PA  – É curioso, porque de facto aquilo que impressiona, que me impressionou desde o início e me levou a estudar este fenómeno, foi ver como também a necessidade espiritual do homem, mesmo a necessidade de rezar, emergia na rede. Em realidades aparentemente estranhas, como o “Second Life”, que era um mundo paralelo, havia igrejas, inclusive casas de exercícios espirituais, onde os avatares se reuniam para rezar. Podemos dizer muitas coisas sobre isso, mas apercebi-me como a necessidade de Deus emerge também na rede. A Igreja não pode ficar surda diante disto, deve perceber o que isto significa.

 

AE - Por vezes há confusão, também nos media, quando se diz que alguém se pode confessar no Twitter. Para esta reflexão específica sobre os sacramentos, esta mutação, este modo de ser traz efetivamente desafios próprios?

PA  – Temos de entender-nos: o ambiente digital não substitui o ambiente físico. Este é um ponto: não há substituição, há uma integração. A questão é não viver a esquizofrenia, por causa da qual se escolhe ou o ambiente físico ou o ambiente digital.

Há coisas que apenas se podem fazer no mundo físico: imaginemos os cheiros, os sabores. Ou seja, a nossa vida sensível exprime-se no ambiente físico. O ambiente digital, por outro lado, ajuda-nos na nossa comunicação, isto é, ainda que vivamos de um modo diferente, conseguimos comunicar, sem as barreiras do espaço e do tempo, graças à internet.

Posso dar um pequeno exemplo, que vivi. Eu dou aulas na Universidade Pontifícia Gregoriana e um aluno meu nigeriano, que vive em Roma, disse-me uma vez: “Sabe, padre, eu amo o meu computador”. Eu perguntei-lhe: “Mas porquê amas o teu computador”. A sua resposta foi: “Porque dentro estão todos os meus amigos”.

Esta resposta tocou-me, porque no fundo o ambiente digital era para ele o modo de permanecer em contacto com a sua família, os seus amigos, o seu ambiente. Isto é extremamente interessante e faz-me refletir.

 

AE - Já disse várias vezes, em conferências, que o próximo neste tempo é quem está conectado e esta ideia de ligação é um conceito central, também para o Cristianismo. Há, digamos, uma abordagem que se pode fazer a esta linguagem do mundo digital e também à linguagem católica, para que se encontrem nesta ideia de conexão?

PA   – A Igreja tem dois mil anos de sabedoria ligada à comunicação, à comunicação de uma mensagem, e à relação. No fundo, poderia dizer isto: a Igreja e a rede estiveram sempre destinados a encontrar-se, porque aquilo que funda a rede são as relações – pensemos nas amizades, nas relações entre pessoas -, e a comunicação de uma mensagem. E aquilo que funda a Igreja são as relações de comunhão e a comunicação da mensagem evangélica.

Portanto, a rede e Igreja são chamadas desde sempre, de alguma forma, a encontrar-se. É certo, no entanto, que para a Igreja não basta a conexão, a comunhão é muito mais e não é o fruto dos esforços humanos, é um dom que se recebe do Alto. Diria que a Igreja não pode reduzir as relações eclesiais às meras conexões, a Igreja tem consciência de que a experiência de comunhão que vive é um dom do Espírito.

 

AE - Talvez por causa desta dimensão mais profunda, mas não só, exista um pouco de ceticismo, algumas reservas em várias intervenções do magistério, nas quais se diz que há potencialidades nestas novas tecnologias, mas recordando os perigos, aquilo que é preciso superar. É compreensível, esta posição?

PA   – Absolutamente, e também muito importante. Evidentemente, até pela facilidade e pela rapidez de conexão, o bem e o mal passam rapidamente e, por isso, também o mal: existem riscos, os riscos de alienação, de esquizofrenia, mas também na vida física há muitos riscos, há alienações, há grandes contradições. Os riscos que se correm não nos devem assustar, temos de enfrentar grandes desafios, até porque a internet não é algo que possa deixar de existir, é um dado de facto, por isso a questão não é “internet sim” ou “internet não”, mas como viver bem no tempo da internet.

 

AE - Na sua entrevista às revistas jesuítas, o Papa Francisco disse que é necessário entender sempre como é que o homem de hoje se compreende. Esta dimensão digital não é uma dimensão que se possa negligenciar.

PA   – Não, não. Nem é sequer estática, isto é, o homem desenvolve uma compreensão de si cada vez maior, isso di-lo o Papa, na sua resposta. Este é um grande desafio: precisamos de ser geniais, como diz o Papa, esta é uma passagem que me tocou muito, não podemos ser estáticos, não podemos usar sempre as mesmas categorias, não podemos ficar parados quando o homem muda um pouco o modo de se ver a si mesmo. A Igreja deve escutar o homem, a forma como se interpreta, para então comunicar a sabedoria do Evangelho e da sua tradição, com muitos anos, sabendo que a tem de comunicar. Para isso tem de conhecer as categorias que o homem vive hoje na sua história, na sua cultura.

 

AE - Para si, como foi a experiência de entrevistar o Santo Padre?

PA  – Bem, foi… diria que é impossível entrevistar o Papa. Pode dizer-me: Mas como, se o entrevistou? Não, é impossível porque na realidade, o Papa não consegue estar dentro de esquemas demasiado rígidos.

 

AE - Pergunta-resposta…

PA - Exato. A pergunta-resposta, pergunta-resposta com ele é impossível. Ele expande o seu pensamento na relação, digamos.

Eu tinha diante de mim, naturalmente, papel e caneta, para além do gravador, e a certa altura deixei de lado o papel e a caneta porque acabavam por ser um filtro. O cenário da nossa entrevista na realidade o de uma conversa amigável.

 

AE - Pensa que os media e as pessoas em geral compreenderam bem esta entrevista?

PA   – Eu penso que as pessoas perceberam muito bem. Recebi mais de mil mensagens, de pessoas – mesmo de pessoas afastadas, de sacerdotes que tinham deixado o sacerdócio há anos, que deixaram mesmo a Igreja – que me escreveram e diziam: Se tivesse lido esta entrevista anos atrás, não teria deixado a Igreja.

Tive a perceção de que houve uma grande, como dizer, uma nova consciência: as pessoas escutam muito bem as palavras tão diretas, simples, do Papa. Houve uma grande reação.

Diria que, mais do que a reação dos media, me tocou a reação das pessoas, que perceberam bem o Papa.

Os jornais, por vezes, tiram uma ou outra palavra, sublinham uma ou outra palavra, procurando criar oposições. Na realidade, o discurso é um discurso muito fluído.

 

AE - Neste discurso, nunca ficou surpreendido?

PA   – Ah, sempre! Sempre, mas também pela atitude do Papa: por exemplo, o Papa exprime uma grande autoridade, mas sem qualquer distância. Ou seja, falar com ele é perceber a sua autoridade, de pontífice, e isso para mim é muito claro, nunca perdi essa perceção. Mas ao mesmo tempo, não percebi qualquer distância, percebi uma comunicação fluída, diria quase amigável, de absoluta espontaneidade e imediatez.

Em nenhum contexto houve rigidez ou a perceção de que alguma pergunta fosse melhor não a fazer. Foi totalmente livre e aberto, disponível para qualquer questão e foi uma conversa muito aberta.

 

AE - Esta conversa permitiu, por assim dizer, abrir as portas para aquilo que o Papa pretende para a Igreja.

PA  – Com certeza, mas gostaria de dizer uma coisa que me parece importante: o Papa não tem ideias claras, a priori, distintas. Para alguns é como se o Papa tivesse ideais precisas, que depois coloca imediatamente em prática. Não.

Na verdade, ele vive num processo de discernimento, ele compreende o que tem de fazer, começando a agir, vendo as reações, seja das pessoas à sua volta, das pessoas em geral, seja as reações que ele tem na oração, e depois segue em frente, consultando e rezando. Diria que o Papa abre um processo e talvez nem ele próprio saiba bem onde vai chegar esse processo. Neste sentido, está profundamente ligado à espiritualidade que incarna, à espiritualidade inaciana, que é a espiritualidade do discernimento espiritual.

 

AE - Também sobre o mundo da Comunicação, o Papa Francisco tem já duas ou três intervenções que são verdadeiramente importantes, como o discurso ao Conselho Pontifício, também já escolheu o tema para o próximo Dia Mundial das Comunicações Sociais. O que é que podemos aprender com este pontificado sobre o modo como devemos ser comunicadores?

PA   – Digamos que, até há algum tempo, a comunicação significava transmitir. Agora significava compartilhar e nisso o Papa é extraordinário. Disse numa entrevista que o Papa não comunica, o Papa cria acontecimentos comunicativos, nos quais aqueles que recebem a mensagem se tornam atores e não simplesmente espetadores.

Recordemos o momento em que o Papa aparece na varanda da Basílica de São Pedro, na tarde da sua eleição: deu a sua bênção, mas antes de dar a bênção inclinou-se para receber a oração das pessoas que estavam na praça. Assim, tornou protagonistas os homens e mulheres que estavam diante dele, naquela praça, e isso é muito interessante: o Papa não torna as pessoas passivas, mas torna-as ativas, dinâmicas, capazes de serem participantes nos acontecimentos. O Papa é um homem das redes sociais.

 

AE - Deveria ser um exemplo para quem tem a missão de comunicar, não propor apenas ideias e discursos, mas ter também esta capacidade de escutar e de interagir?

PA   – O Papa ultrapassou o conceito do púlpito, da Igreja que é exclusivamente emissora de uma mensagem, que está a pregar do púlpito, de maneira distante das pessoas. Não, a sua forma de comunicar é o típico das redes sociais, ainda que o Papa não tenha nenhum contacto com as tecnologias. A questão é que ele vive de forma espontânea e natural este modo de comunicar e este foi sempre assim, mesmo como arcebispo de Buenos Aires.

 

AE - Podemos falar de forma mais específica sobre a existência de uma conta do Papa Francisco no Twitter. É um verdadeiro caso de sucesso. Como se entende que alguém que não interage com outras contas consiga ser seguido por 9 milhões de pessoas e repetido por tanta gente? Como se explica?

PA   – O Papa quando comunica, comunica com total espontaneidade e imediatez. Por isso, a sua mensagem é acolhida, comentada, retweetada. Então, o facto de que o Papa esteja também nas redes sociais, de forma particular no Twitter, com a sua mensagem tem este significado: torná-la disponível para a partilha comigo.

 

AE - Regressando ao tema da ciberteologia, daquilo que o trouxe a Portugal: nas suas conferências não há só católicos, com certeza, não há só membros da hierarquia. As pessoas ficam surpreendidas com este conceito de Teologia no mundo digital e com a introdução na Teologia dos novos conceitos que o mundo digital trouxe?

PA   – Bem, devo dizer que há por certo conceitos que talvez sejam novos, mas tudo somado não diria que há algo radicalmente novo. Nós deixamo-nos impressionar pela tecnologia, vendo que as máquinas funcionam bem, que nos espantam pela sua qualidade, ficando profundamente impressionados por isso.

Na verdade, deveríamos questionar-nos sobre quais as necessidades a que tudo isto responde: indagando bem, as necessidades do homem são sempre as mesmas dos antigos, ou seja, a necessidade de conhecer a realidade, a necessidade de relacionar-se com o outro. No fundo, o ambiente digital responde a estas necessidades: relação, conhecimento, comunicação. São necessidades que o homem sempre teve.

Por isso, diria que deveríamos ser menos tocados pelo aspeto tecnológico e deveríamos, pelo contrário, ficar mais impressionados pela importância que estas necessidades que o homem sempre teve ainda hoje têm.

 

AE - Para a linguagem teológica, não basta esta parte técnica, uma tecnofilia, não é suficiente.

PA   – Não, de forma alguma. É preciso que não nos deixemos enganar, deste ponto de vista, é preciso perceber o que leva o homem a agir. No fundo, o grande preconceito que temos, talvez o tenhamos vivido sempre e sobretudo no século passado, foi o de separar a espiritualidade do homem da sua elaboração tecnológica.

Na realidade, a tecnologia é uma forma de espiritualidade, isto é, exprime necessidades espirituais do homem, é um facto no qual atua a liberdade, o bem e o mal. Ficamos impressionados pelo uso terrível da tecnologia na II Guerra Mundial, da bomba, substancialmente. Ficamos impressionados com este uso negativo e consideramos a tecnologia como algo frio, distante, desumano. Mas na verdade não é assim, porque a tecnologia tem um papel importante no projeto de Deus para a humanidade.

No fundo, a verdadeira pergunta da ciberteologia é muito simples: qual é o projeto de Deus na internet, isto é, qual é o significado no plano de Deus para a humanidade.

 

AE - Coloco uma questão hipotética: ainda que não nos devamos centrar apenas na tecnologia, é possível pensar que um dia essa tecnologia seja uma extensão do humano, não só do ponto de vista externo, mas também implantada ou noutras dimensões. Que desafios pode trazer à Teologia esta fusão da tecnologia no humano?

PA   – Vejamos, é preciso perceber, discernir sobre o concreto, não se podem fazer discursos demasiado abstratos, porque como dizia antes, o campo da tecnologia é o campo da liberdade, no qual o homem pode agir bem ou mal e isto deriva sempre da sua espiritualidade. Onde não é possível o mal, não há sequer liberdade.

O facto de ser possível agir mal significa que há verdadeiramente um campo de escolha, o campo da liberdade. Temos de estar muito atentos a isto, porque é preciso salvaguardar a humanidade do homem: não é idolatrar a tecnologia, mas perceber como e se a elaboração tecnológica do homem responde à sua vocação do seu espírito. Aqui entra em função, se quisermos, o discurso moral, do meu ponto de vista a Teologia Espiritual.

 

AE - Para não se perder esta dimensão que vai para lá da mundanidade, digamos…

PA   – Esta é a questão: é preciso ter em conta não só a liberdade de fazer o bem e o mal mas também a capacidade de o homem exprimir os valores mais profundos da sua humanidade. A tecnologia pode ser uma grande aliada.

De facto, Bento XVI, na sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de há dois anos, disse com toda a clareza que a tecnologia pode ajudar o homem a satisfazer o seu desejo de sentido. Mas Paulo VI, em 1964, falamos de um mundo, verdadeiramente um outro mundo, disse que o cérebro mecânico pode ir em auxílio do cérebro espiritual. Ou seja, o computador, o cérebro mecânico vai ajudar o cérebro espiritual do homem que se exprime no pensamento, na linguagem.

A Igreja, na realidade, sempre percebeu a conexão profunda, vital, entre tecnologia e espiritualidade, somos nós que temos dificuldades para vivê-la a fundo.

OC



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