Entrevistas

Os guetos da cidade e a utilização abusiva de Deus

Luís Filipe Santos
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Entrevista com Guilherme de Oliveira Martins, presidente do Centro de Reflexão Cristã e Centro Nacional de Cultura.

Agência ECCLESIA – As «conferências de Maio» terminaram que avaliação podemos retirar deste ciclo subordinado ao tema “Cidade de Deus – Cidade das Pessoas”? Guilherme de Oliveira Martins - O Centro de Reflexão Cristã (CRC) tem a tradição de organizar, todos os meses de Maio, um ciclo de conferências. Este ano retomámos essa tradição, é certo que nos últimos anos ela tinha tido lugar mas com uma participação relativamente reduzida de pessoas, e desta vez fizemos uma especial mobilização e tivemos uma preocupação particular de ir ao encontro de um número maior de pessoas, não só membros do Centro de Reflexão Cristã mas também amigos do CRC, cristãos em geral. A resposta excedeu as nossas expectativas graças ao apoio do Centro de Estudos da Ordem do Carmo. Pudemos contar com estas instalações e tivemos sempre casas com cerca de 100 ou mais pessoas a assistir sendo que os colóquios foram extraordinariamente participados. Um balanço muito positivo relativamente à receptividade e relativamente ao facto de o Centro de Reflexão Cristã estar numa fase de grande afirmação e de grande vitalidade. AE – Então, Deus está na cidade? GOM - Deus tem que estar na cidade. Ao propormos o tema: “Cidade de Deus - Cidade das pessoas”, fizemo-lo, não para contrapor a cidade de Deus à cidade das pessoas, para criar uma ligação e uma complementaridade. Deus está na cidade e interpela-nos permanentemente. Quando o nosso conselho consultivo nos propôs este tema, fê-lo a pensar na preparação do grande Congresso que terá lugar em Lisboa, no ano 2005, sobre a Nova Evangelização. O tema teria de ser concreto e por isso pensámos na cidade, a organização da cidade e o fenómeno urbano. Por isso começámos por falar da solidariedade e da falta de solidariedade na cidade. AE - Nota-se mais a falta da solidariedade ou a solidariedade na cidade? GOM - Infelizmente nota-se muito os exemplos de falta de solidariedade. O Arqº Nuno Teotónio Pereira, na 1ª sessão, chamou a atenção para o facto de, cada vez mais, termos na nossa própria cidade guetos de pobres e guetos de ricos: os bairros degradados e os condomínios fechados. Dois sinais contrastados da falta de solidariedade. Na última sessão, o Arqº Duarte Nuno Simões chamou a atenção para a necessidade de criarmos uma cidade onde nos sintamos bem, uma cidade hospitaleira. A relação das pessoas deve ser traduzida em gestos de aproximação e não gestos de egoísmo. AE - Acha possível uma cidade hospitaleira no meio de tanta indiferença? GOM - Julgo que possível é e se não fosse possível eu não acreditaria, como acredito, nas Organizações da sociedade civil. Ao aceitar a presidência do CRC fi-lo a partir de um projecto que é a presença dos cristãos na sociedade e essa presença dos cristãos na sociedade obriga-nos a empenharmo-nos em gestos e em iniciativas que suscitem a tomada de consciência de que uns dependemos dos outros. Por outro lado, nós também reflectimos sobre a presença da cultura e a importância da cultura. Deus na cultura. Ao longo das sessões chamou-se a atenção para o facto de encontrarmos um número pouco significativo de intelectuais que assumem essa interrogação religiosa. Na minha experiência no mundo da cultura, actualmente também sou presidente do Centro Nacional da Cultural, é a de que a presença de Deus na cultura é algo de mais subtil e mais complexo do que à primeira vista possa parecer. AE - As pessoas têm vergonha de se assumirem como cristãos? GOM - Não se trata de vergonha ou não vergonha. Trata-se, sobretudo, de compreender que o mundo é indiferente, está pouco atento às questões religiosas, é um mundo vazio, é um mundo que se vai empobrecendo. Ainda há poucas semanas invocava isso num texto que fiz, citando um intelectual alemão, laico, agnóstico, um dos grandes pensadores contemporâneos, que dizia justamente isto «que é necessário que a sociedade contemporânea tome consciência da importância do fenómeno religioso». Independentemente de haver ou não uma mobilização ou mesmo um empenhamento militante numa Igreja ou uma confissão religiosa. Depois da morte de Deus proclamada por Nitzsche é preciso compreendermos qual o sentido e o alcance dessa proclamação. Não se trata da morte do fenómeno religioso. Trata-se sim da necessidade de distinguir a esfera religiosa e a esfera filosófica e compreender que o mundo contemporâneo responde por caminhos diferentes e de formas diversas à interpelação da fé e à interpelação religiosa. Por isso um dos projectos do CRC é o diálogo entre pessoas de fé e pessoas que não têm fé. Os que têm religião e os que não têm religião. AE – Neste diálogo entre crentes e não crentes, os protagonistas conseguem abdicar dos seus valores? GOM - Verificamos que há pontes porque temos a preocupação de encontrar pessoas inteligentes e pessoas que sejam capazes de responder às interpelações. Um dos grandes problemas com que nos debatemos, no mundo da cultura, é a proliferação de monólogos. Se houver um diálogo sério entre pessoas de boa vontade, entre pessoas inteligentes, naturalmente que há um enriquecimento mútuo. O diálogo cultural é absolutamente fundamental AE – Será que a sociedade contemporânea está aberta a estas pontes? GOM - Hoje há a consciência plena, perante as consequências da indiferença e do vazio, que é necessário abrir janelas e perspectivas novas em torno do fenómeno religioso e em torno dos fenómenos religiosos. O nosso terceiro colóquio, nas nossa conferências de Maio, foi um diálogo muito interessante e riquíssimo. Um colóquio entre três representantes das religiões do Livro que têm as mesmas raízes. Num mundo de guerra é importante falarmos de um projecto de cultura da paz. Um projecto que obriga as pessoas se falem e percebam que há raízes comuns que são mais importantes do que aquilo que circunstancialmente divide. E daí exprimirmos uma enorme preocupação pelo facto de estarem a ser reconstruídos os muros, entre pessoas, entre comunidades, e a construção de muros de separação nunca é uma construção de paz, nunca é um factor positivo e benéfico. Por outro lado assistimos, muitas vezes, à utilização abusiva de Deus e do nome de Deus em nome de projectos de guerra e de violência. AE – Fazer a guerra em nome de Deus. GOM - A intolerância gera-se na incompreensão. Incompreensão do outro, incompreensão das diferença, incompreensão das complementaridades, incompreensão do diálogo. O diálogo é um elemento absolutamente central se nós quisermos enriquecer-nos . João Paulo II tem sido, nesse aspecto, alguém que tem tido um contributo excepcional. Uma vez que, num horizonte de guerra e num horizonte de conflito deu sempre um sinal claríssimo de que há que dar passos sérios para evitar os conflitos e, sobretudo, que não haja essa escalada de violência em nome de uma visão fechada, rígida da Fé e de Deus. AE - João Paulo II apelou mas, alguns políticos, não ouviram o apelo GOM - É verdade. Infelizmente, os acontecimentos têm confirmado que João Paulo II, nesse ponto, tem tido uma visão profética. O mundo é sempre feito de uma tensão entre a visão profética e a visão política. A visão política é mais imediatista. É necessário que a visão profética alimente a visão política mas muitas vezes há divórcio O polo profético coloca a dignidade humana em primeiro lugar. É algo que nós temos que apoiar com toda a nossa força e criar essas pontes para que a cidade de Deus seja também a cidade das pessoas.


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