Portugal: Somos mais herdeiros do que construtores
António Matos Ferreira, diretor do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa
O Dia de Portugal é ocasião para recordar um património cultural, repensar a identidade, definir programas de ação. É um dia em que o cidadão se procura compreender e rever numa comunidade, numa história. Também para equacionar lamentos diante de normas chegadas de centros de decisão, sobretudo internacionais. Questões analisadas por António Matos Ferreira, diretor do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.
Agência Ecclesia – As atuais circunstâncias em que Portugal se encontra colocam-no numa situação de protetorado em relação à União Europeia?
António Matos Ferreira – Não. Portugal sempre conheceu mecanismos de dependência. O grande problema é saber até que ponto os cidadãos portugueses estão convencidos da relevância histórica da construção europeia. Aí reside uma das dificuldades: a Europa foi explicada como um projeto que só trairia coisas boas. Agora estamos diante de um problema económico, que não diz apenas respeito à Europa…
Há também o problema da inclusão. A Europa foi pensada a partir da articulação de nacionalidades e Estados. Mas é necessário saber que capacidade o projeto tem de se afirmar e qual o grau de inclusão e de coesão.
As questões que se põem a Portugal, a Espanha, a Itália, a Grécia, etc., estão relacionadas com as limitações de cada uma destas sociedades, nomeadamente a portuguesa. Por outro lado, há o problema da credibilidade: que homens e mulheres políticos são capazes de criar credibilidade, confiança? As pessoas banalizaram o que se diz, o que se analisa, nomeadamente na comunicação social onde há três temas que são recorrentes: a política “politiqueira”, a economia e o futebol. A mundividência das pessoas esgota-se aí.
AE – Que possibilidade existe de construção da credibilidade da classe política quando a dependência externa, nomeadamente Europeia, é acentuada?
AMF – Penso que temos de ser capazes de construir culturalmente discursos positivos e propositivos.
AE – E há essa possibilidade?
AMF – É uma criatividade, como noutras alturas da História da humanidade. Não vale a pena dizer que as pessoas irão ser todas ricas. Não se pode governar na lógica do euromilhões nem na lógica de retirar horizontes de futuro às pessoas.
A governação não pode ser simplesmente um exercício do poder, quase sequestrado por um conjunto de elites que são rotativamente as mesmas e distantes do quotidiano dos cidadãos, muitas vezes associado a modelos de vida que não têm consistência.
AE – Essa é uma circunstância de muitas épocas da História de Portugal? Como comenta a afirmação de D. Manuel Clemente: “Vivemos geralmente mal com nós mesmos, por nos acharmos sempre aquém do que teríamos sido ou do que poderíamos voltar a ser”?
AMF – A realidade de Portugal é muito complexa. Hoje quando falamos de Portugal não poderemos ver Portugal como há 100 anos, onde a coesão populacional era feita com outras mediações. A nossa sociedade, não sendo muito grande, é complexa.
AE – Mas consolidada no tempo…
AMF – Consolidada por uma narrativa. Sobre Portugal contam-se coisas… Há muitas gerações, em Lisboa ou no Porto, por exemplo, que sabem que D. Afonso Henriques existiu e nada mais…
Somos mais herdeiros do que construtores! Tendemos a dar menos valor ao passado. O grande problema é não saber o que fazer com o passado que herdamos.
Não basta voltar a um passado lamurioso e que desenvolva uma consciência depressiva: houve um momento de glória e depois só fomos perdendo oportunidades…
A grande mobilização tem de ser baseada na credibilidade: por um lado não se pode enganar as pessoas e, por outro, é necessário possibilitar-lhes, nas diferentes faixas etárias, um protagonismo que lhes dê realização pessoal e coletiva.
Analisemos por exemplo o problema do desemprego, transversal a toda a Europa, dramático nalguns países. O desemprego não pode ser visto como uma realidade que se tem de aceitar. Porque as pessoas não têm 50 vidas nem sete! Têm uma vida! A ausência da capacidade de proporcionar o protagonismo a cada pessoa, sentindo-se aptas a fazer alguma coisa, é um atraso coletivo.
AE – Esse protagonismo depende só de um posto de trabalho?
AMF – Sim, porque houve alterações profundas na vida das pessoas que genericamente dependem dos rendimentos do seu trabalho. Se há umas décadas dizíamos “quem não trabalha não come”, hoje percebe-se que não há trabalho para todos…
É grave dizer às pessoas “trabalho não falta” porque falta a possibilidade de reconhecimento pessoal pelo trabalho de modo que possam sobreviver.
O problema da sobrevivência está ligado também às expectativas que se criam do nível de sobrevivência.
Promover uma sociedade como a nossa, que pretende ser aberta e participativa, tem de ser o resultado de uma grande capacidade de dialogar com as pessoas.
AE – José Mattoso acentuou a ideia de que o progresso não é infinito. As sociedades ocidentais estão reféns dessa falsa certeza?
AMF – Estou convencido que tudo isso é um processo de consciência social e individual. As pessoas vão percebendo que há coisas que não se podem atingir. A política deveria ter essa dimensão pedagógica, que não pode ser remetida à escola ou às famílias.
Mas também penso que o desequilíbrio entre os níveis de vida das pessoas não pode ser infinito…
AE – Desequilíbrio que se está a agravar em Portugal?
AMF – Claro! Como noutros países. Analisando não a economia, mas as consequências antropológicas e culturais que ela pode gerar, temos a consciência de não vivemos oficialmente não numa sociedade de escravatura associada a uma determinada redução do ser humano ao objeto. Mas em muitas circunstâncias atuais do mundo do trabalho e do que diz respeito ao horizonte de vida das pessoas sente-se alguma ausência de liberdade. Isso não significa fazer o que apetece, mas as pessoas poderem sentir que se realizam!
AE – Durante muitos séculos, Portugal caracterizou-se por uma religiosidade acentuada, também pelo peso institucional de uma religião, o catolicismo. Hoje, o que é que baliza a sociedade portuguesa?
AMF – Provavelmente não será uma institucionalização tão forte do religioso, nomeadamente através da Igreja Católica. Mas na sociedade portuguesa continuam a existir níveis elevados de coesão fornecidos pela identificação religiosa. Isto é, não estamos numa sociedade onde o cidadão não tenha recursos para dar sentido à sua vida a não ser pela diminuição diante de um todo ou um totalitário ou num atomismo individualista. Seria um perigo muito grande manter-se esse tipo de análise, porque não creio que corresponda à realidade. Vivemos numa sociedade onde há mais referenciais do que se imagina da vivência e da cultura de várias tradições religiosas, entre as quais e de maneira relevante o cristianismo. Mas provavelmente não está exatamente onde tradicionalmente estava.
A religião hoje não está nas sacristias nem nos lugares de culto. Está na possibilidade que as pessoas sentem de dar sentido à sua vida. O grande problema é que as instituições religiosas, qualquer uma delas, estão mais motivadas numa dinâmica tradicional de enquadramento das pessoas do que em potenciar e valorizar a afirmação da consciência dos crentes. O que implicaria a capacidade de dialogar, integrando o que as pessoas vivem e não rejeitando-o à partida.
AE – Isso implicaria reservar a religião para o espaço privado, da consciência?
AMF – Acho que a religião nunca está no espaço privado.
AE – Basta que os crentes estejam no espaço público…
AMF – Está no espaço público através dos cidadãos… Outra coisa é o poder das instituições religiosas, a capacidade que têm de institucionalização.
Claro que é necessário que as religiões nas suas formas institucionais tenham a plena liberdade de se organizarem. Mas não vale a pena fugir a uma questão: a religião e a crença estarão sempre presentes através dos indivíduos. O que origina alguns problemas na sociedade contemporânea: quando se vive numa sociedade de pluralidade religiosa, temos por vezes comportamentos de cidadãos que, pelas suas motivações religiosas, levantam questões à sociedade. Como também há questões da sociedade que se repercutem nos cidadãos, nomeadamente de ordem moral.
AE – Marca a História de Portugal um certo anticlericalismo. Como é que ele se equaciona atualmente?
AMF – Por obrigação de ofício tenho estudado essa problemática. Penso que o item “anticlericalismo” generalizou-se na historiografia, mas ele é insuficiente para uma análise séria. Desde logo porque não há um anticlericalismo, mas vários. Não há ninguém melhor para ser anticlerical do que alguém cujo anticlericalismo parta do interior da instituição.
O anticlericalismo é um problema da relação com o poder. É um problema de reação às formas de exercício do poder. Há formas de anticlericalismo no interior das Igrejas.
Se o anticlericalismo que é uma afirmação contra a Igreja e a religião, isso é outra coisa.
AE – Há quem fale mesmo em anticlericalismo muito cristão…
AMF – Sim, há vários estudos… Se quisermos, o anticlericalismo é a expressão de uma tendência social mais ampla de natureza maniqueia, relacionada com a contestação da institucionalização das formas de poder.
AE – Como analisa o futuro próximo de Portugal e dos portugueses?
AMF – Portugal sempre afirmou uma grande unidade, mesmo recorrendo a inimigos. Por outro lado, tem a experiência significativa da diáspora. De tal modo que o dia de Portugal é da Camões, do poeta lírico que cantou a ideia da realidade única dos lusitanos, e ao mesmo tempo de dispersão, das comunidades portuguesas.
Nestas circunstâncias, Portugal enfrenta a questão de saber como articular a sua participação na construção de vários palcos onde se encontra: a União Europeia, os Países de Língua Oficial Portuguesa e no espaço que ocupa, por várias razões, no âmbito cultural e diplomático ao nível internacional. O problema é saber como é que isso é percecionado como oportunidade para existir e não unicamente como recurso do falhanço.
AE - E à Igreja Católica, que papel lhe cabe no Portugal contemporâneo?
AMF – Ajudar a integrar as pessoas e a desenvolverem a sua consciência de sentido para o que vivem. Essa é a experiência da Igreja…
PR
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