Redescobrir a Missão
D. António Couto, presidente da Comissão Episcopal para as Missões, aborda a actualidade missionária em Portugal, destacando a dinâmica que se quer imprimir a partir da carta pastoral «Para um rosto missionário da Igreja em Portugal».
Missão ad gentes não é tanto uma maneira de demarcar espaços a que haja que levar o primeiro anúncio do Evangelho, mas é mais o modo feliz, ousado, pobre, despojado e dedicado de o cristão sair de si para levar Cristo ao coração de cada ser humano, seja quem for, seja onde for.
É assim que D. António Couto, presidente da Comissão Episcopal para as Missões, aborda a actualidade missionária em Portugal, destacando a dinâmica que se quer imprimir a partir da carta pastoral «Para um rosto missionário da Igreja em Portugal».
Agência ECCLESIA (AE) - Num contexto de progressiva secularização, recentemente recordada pela CEP e pelo próprio Papa, agudiza-se a necessidade de uma “primeira evangelização” em Portugal?
D. António Couto (AC) - A evangelização é sempre “primeira”. E só sendo “primeira”, é verdadeira. E “primeira” significa aquela que Jesus mandou fazer aos seus Apóstolos e discípulos, ao estilo de Jesus Bom Pastor, pobre e humilde, sem ouro, nem prata, nem cobre, nem duas túnicas, totalmente devotado ao Pai e às suas ovelhas, todas suas, quer as que estão perto quer as que estão longe ou andam perdidas, sem olhar às etiquetas do mundo de então. É esta Evangelização que a Igreja tem sido sempre chamada a fazer, ao estilo de Jesus, e não pode deixar de fazer, sob pena de se desdizer, perdendo a sua identidade. Disse-o bem o Papa Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, de 8 de Dezembro de 1975, n.º 14: «Anunciar o Evangelho constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda. A Igreja existe para Evangelizar». A recente Carta Pastoral da CEP leva o título significativo de «Como Eu vos fiz, fazei vós também». Aquele como inicial é determinante para nos agrafar, não só ao fazer de Jesus, mas ao modo como Ele faz. É claro. Já não basta converter ou reconverter estruturas pastorais. É mesmo necessário e preliminar que comecemos por nos convertermos nós ao estilo de Jesus, ao como fazer de Jesus. Portanto, para um cristão e para a Igreja, a evangelização tem de ser sempre “primeira” em qualquer tempo e em qualquer lugar. Nada a pode substituir e nenhuma outra tarefa se lhe pode antepor. Ela é a nossa graça, a nossa maneira de ser.
A forma como a pergunta está formulada pode deixar supor que há outras maneiras de se ser cristão e de viver em Igreja. E que só agora, nesta «noite do mundo», em que vemos o chão a fugir-nos debaixo dos pés em Portugal e em toda a Europa, é que se torna necessário lançar mãos da “primeira evangelização”. Esta suposição pode levar a pensar que a referida “primeira evangelização” é uma coisa excepcional a usar só em situações excepcionais. Raciocínio viciado. A “primeira evangelização” ou a “evangelização primeira” ou “primeiro” é a normal, quotidiana maneira de ser da Igreja e do discípulo de Jesus. O tempo em que vamos requer lucidez e determinação. Reconhecer que não temos cumprido a nossa missão de evangelizar como Jesus nos mandou é um dado que se nos impõe. Bater com a mão no peito por nos termos acomodado e afastado do estilo de Jesus é decisivo. Pusemos, entretanto, muitas coisas entre nós e Jesus. Mas uma só coisa é necessária! E não há “evangelização requentada”!
AE - Que dinâmica se pretende gerar com o conceito de Centro Missionário Diocesano?
AC - Pretende-se ajudar a tornar normal aquilo que tem sido considerado excepcional. Normal é anunciar o Evangelho ao estilo de Jesus. Normal não é, como se tem pensado e ainda se continua a pensar, formar os cristãos numa certa doutrina e para uma certa prática da vida cristã, verificada pela frequência dos sacramentos, mormente pela chamada «prática dominical». Note-se que se tem feito e se está a pensar continuar a fazer deste ponto o barómetro da vida cristã e católica no nosso país. Na verdade, a nossa identidade, aquilo que nos deve identificar, a nossa graça, aquilo que é sempre primeiro e que nunca pode ser segundo é anunciar o Evangelho ao estilo Jesus e no seguimento de Jesus. Isto supõe uma reviravolta no itinerário de toda a formação cristã, que deve ser missionária desde o início, e não apenas nas suas últimas etapas, em jeito de conclusão. Neste sentido, na sua Mensagem para o 83.º Dia Missionário Mundial (18 de Outubro de 2009), o Papa Bento XVI lembrou «às Igrejas antigas como às de recente fundação» que «a missão ad gentes deve ser a prioridade dos seus planos pastorais», como já tinha lembrado, na Mensagem para o 82.º Dia Missionário Mundial (19 de Outubro de 2008), citando o Decreto Ad Gentes, n.º 38, que o «seu compromisso [dos Bispos] consiste em tornar missionária toda a comunidade diocesana».
Se a Igreja particular, com o seu Bispo à cabeça, é o sujeito primeiro da missão, ao Centro Missionário Diocesano, instituído pelo Bispo Diocesano, competirá ajudar o Bispo a dinamizar e sensibilizar missionariamente toda a Diocese, de modo a manter alta a consciência missionária e a efectiva capacidade evangelizadora de toda a comunidade diocesana. As competências deste Centro derivam, portanto, das atribuições que lhe forem confiadas pelo Bispo. Mas é fácil ver que a sua influência se pode fazer sentir em todos os âmbitos da formação, acolhimento, partilha e entreajuda, comunhão e comunicação entre as Igrejas, ajudar a dar a conhecer e a manter vivos no terreno o espírito e a acção das Obras Missionárias Pontifícias, promover a celebração e vivência do Dia Missionário Mundial e do Dia da Infância Missionária, bem como do Outubro Missionário, manter vivos os Grupos Missionários Paroquiais ou Inter-Paroquiais, dar a conhecer e sensibilizar à participação em iniciativas de formação missionária já existentes a nível nacional, tais como o Curso de Missiologia e as Jornadas Missionárias. Deste Centro devem fazer parte membros dos Institutos Missionários e Religiosos presentes no espaço diocesano, mas também Padres e fiéis leigos diocesanos.
AE - Esta iniciativa já está lançada na Arquidiocese de Braga. Como tem decorrido esta experiência?
AC - É verdade que a iniciativa já está lançada em Braga. Houve um primeiro encontro do Senhor Arcebispo com o Delegado Arquidiocesano das OMP e representantes dos Institutos Missionários, em que ficou decidido avançar para a formação do Centro Missionário Arquidiocesano de Braga. Seguiu-se depois outro encontro mais alargado com a minha presença em representação do Senhor Arcebispo, em que se definiu a forma de composição deste Centro, com pessoas a indicar pelos Institutos Missionários e pela Arquidiocese. A próxima reunião será para confirmar a constituição do Centro e definir os principais caminhos a trilhar. Só a partir de então, o Centro assumirá funções efectivas.
Novos campos para a evangelização
AE - Como conciliar os novos campos de missão com a tradicional dinâmica de partida rumo a outros países, para anunciar o Evangelho a quem nunca o escutou?
AC - Se o mandato de evangelizar todas as pessoas constitui a missão essencial de toda a Igreja, então a missão tem de ser o horizonte permanente e o paradigma por excelência de toda a dinâmica e empenhamento pastoral, enervando os nossos programas pastorais. E o partir em missão, numa Igreja local que se assume como sujeito primeiro da missão, permanece como paradigma do compromisso missionário da Igreja, que assim vive e manifesta a sua solicitude por todas as Igrejas. Ao contrário daquilo que os pressupostos que parecem presidir à pergunta possam dar a entender, a missão ad gentes não empobrece a Igreja local, mas «renova-a, revigora a sua fé e identidade, dá-lhe novo entusiasmo e novas motivações. A fé fortalece-se, dando-a», de acordo com as palavras luminosas de João Paulo II, na sua Carta Apostólica Redemptoris Missio (7 de Dezembro de 1990), n.º 2. É outra vez o estilo que é decisivo. A missão ad gentes não é tanto uma maneira de demarcar espaços a que haja que levar o primeiro anúncio do Evangelho, mas é mais o modo feliz, ousado, pobre, despojado e dedicado de o cristão sair de si para levar Cristo ao coração de cada ser humano, seja quem for, seja onde for. É este estilo, esta maneira de ser, que deve informar cada cristão e todas as comunidades cristãs.
As consequências práticas para a vida eclesial e paroquial são profundas e intensas, requerendo uma nova sensibilidade evangelizadora obrigatória e não arbitrária. Antecipando-se a previsíveis dificuldades e reservas, alertou bem o Papa João Paulo II que nenhuma Igreja particular, de antiga ou de recente tradição, «se deve fechar em si própria», adiantando logo que «a tendência para se fechar em si próprio pode ser forte». E, no que se refere às Igrejas antigas, advertiu que, «preocupadas com a nova evangelização, podem ser levadas a pensar que agora devem realizar a missão em casa, correndo assim o risco de refrear o ímpeto para o mundo não cristão, sendo pouca a vontade de dar vocações aos Institutos Missionários». A estas Igrejas, o Papa lembra que «é dando generosamente que se recebe» (Redemptoris Missio, n.º 85). E a Congregação para o Clero, na sua Instrução Postquam Apostoli (25 de Março de 1980), n.º 14, já tinha advertido que «a Igreja particular não pode fechar-se em si mesma, mas, como parte viva da Igreja Universal, deve abrir-se às necessidades das outras Igrejas. Portanto, a sua participação na missão evangelizadora universal não é deixada ao seu arbítrio, ainda que generoso, mas deve considerar-se como uma lei fundamental de vida; diminuiria, de facto, a sua energia vital se, concentrando-se unicamente sobre os próprios problemas, se fechasse às necessidades das outras Igrejas». E o Papa Bento XVI acaba de nos advertir, na Homilia da Santa Missa celebrada na Praça dos Aliados (Porto), em 14 de Maio de 2010, que «nada nos dispensa de ir ao encontro dos outros», pelo que «temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter, de nosso e seguro», lembrando-nos ainda que isso «seria morrer a prazo, enquanto presença da Igreja no mundo, que, aliás, só pode ser missionária».
Portanto, nenhuma dificuldade de conciliação. Antes, a missão ad gentes potencia e renova a Igreja inteira em todos os aspectos.
AE - Quais são os âmbitos e os protagonistas desta “Nova Evangelização”.
AC - O assunto é de fundo. Evangelizar não pode ser um luxo de alguns. Tem de ser normalidade para todos. É preciso tomar consciência de que é toda a Igreja que é missionária, e que, portanto, ser cristão implica necessariamente ser missionário. Que o cristão não necessita de outra vocação para ser missionário: basta a vocação que tem. Que «cristão» e «missionário» não identificam duas figuras distintas nem duas vocações distintas, mas são qualificações incindíveis do discípulo de Jesus. Que ninguém pode pensar que se pode ser, em primeiro lugar, cristão, e depois, se se sentir chamado e se quiser, vir também a ser missionário. Para o cristão, ser missionário é a sua maneira de ser, a sua identidade, a sua graça, é uma necessidade, é de fundo e não um adereço facultativo. A sua referência permanente é Jesus Cristo, e o seu horizonte são todos os corações.
Se é assim, então, como já acima referi, já não basta converter ou reconverter as estruturas pastorais de que dispomos. É mesmo necessário e preliminar que comecemos por nos convertermos nós ao estilo de Jesus, ao como de Jesus. Se não voltarmos a ser pobres, simples, humildes, despojados e felizes como Jesus e os seus Apóstolos e discípulos directos, não seremos credíveis. É neste ponto preciso que tem fracassado a chamada “Nova Evangelização”, de que já se vem falando há mais de 25 anos.
O Papa Bento XVI, posto perante a crescente descristianização de muitas das Igrejas de antiga tradição cristã, anunciou na Homilia das I Vésperas da Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, Celebradas na Basílica de São Paulo Fora de Muros, na tarde de 28 de Junho de 2010, a criação do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, e, em 30 de Junho de 2010, confiou a sua Presidência ao Senhor Arcebispo Salvatore Fisichella. Na Homilia acima referida, Bento XVI apontou como tarefa fundamental do Novo Conselho Pontifício «Promover uma renovada evangelização nos países onde já foi feito o primeiro anúncio da fé e estão presentes Igrejas de antiga fundação, mas que estão a viver uma progressiva secularização da sociedade e uma espécie de “eclipse do sentido de Deus”, que constitui um desafio a encontrar meios adequados para repropor a verdade perene do Evangelho de Cristo». Todos esperamos que esta iniciativa seja uma oportunidade ganha. Pessoalmente espero que não enveredemos apenas por reformas técnicas e iniciativas exteriores, mas que se aponte verdadeiramente ao essencial. E o essencial é a conversão pessoal, uma vida pobre, desprendida, simples e feliz, com Jesus, como Jesus, ao estilo de Jesus e dos seus Apóstolos e Discípulos directos. O modo contará mais do que a técnica e o conteúdo. E é evidente, impõe-se, dadas as circunstâncias, que se crie uma verdadeira rede de evangelizadores evangelizados, que envolva a Igreja inteira: Bispos, padres e fiéis leigos. E estes últimos terão certamente um papel determinante neste belo trabalho de amor.
AE - Como devem ser lidas as novas modalidades de missão, como o voluntariado missionário, mais limitadas no tempo?
AC - Eu leio-as como verdadeiros dons de Deus à sua Igreja. Já se sabe que esta rede de juventude que estará em contacto com mundos e modos novos de viver a vida e a fé, não irá, em primeiro lugar, ensinar ou fazer muita coisa, dada a escassez de tempo, ainda que seja muita a vontade. Irá sobretudo ser afectada por situações de pobreza e de miséria impensáveis. Mas também de simplicidade, fé verdadeira, e de alegria que vem não se sabe de onde. Irão contactar com o milagre! Irão ser contactados por Deus! É aqui que pode começar uma maravilha que ainda não tinham descoberto, talvez a pérola escondida e encontrada do Evangelho, que tem marcado a vida de muitos e que continuará seguramente a marcar a vida de muitos outros! A vida de muitos destes jovens nunca mais será como dantes. Demos graças a Deus por estas oportunidades de graça que concede à sua Igreja.
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