Redistribuir riqueza para garantir a paz
O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, Alfredo Bruto da Costa, reconduzido no cargo pela Conferência Episcopal Portuguesa, comenta a realidade nacional à luz da mensagem de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz de 2012
O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, Alfredo Bruto da Costa, reconduzido no cargo pela Conferência Episcopal Portuguesa, considera que o apelo à emigração feito pelo Governo aos desempregados “é uma estratégia de quem desistiu e declara a sua derrota”. O responsável, convidado pela Agência ECCLESIA a analisar alguns passos da mensagem de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz de 2012, considera que a ação do Executivo se opõe à “redistribuição da riqueza” defendida pelo Papa, ao não taxar todos os rendimentos.
O especialista em questões de pobreza diz também que o Governo, mesmo que queira, pouco pode fazer para adequar as suas políticas à Doutrina Social da Igreja enquanto o lucro for o objetivo principal da economia mundial.
Agência ECCLESIA (AE) – Na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2012, Bento XVI fala da necessidade de “procurar adequadas modalidades de redistribuição da riqueza”. Em Portugal está a caminhar-se nesse sentido?
Alfredo Bruto da Costa (ABC) – Penso que não. A explicação que os políticos têm dado é de que os principais objetivos são o cumprimento das metas do défice e da dívida. Mas a justiça social não está a ser cumprida porque nem todas as formas de rendimento são igualmente taxadas nem todos os níveis de rendimento são igualmente penalizados.
A distribuição dos rendimentos é uma preocupação que tem de ser tida em conta porque a paz depende dela.
AE – A conflituosidade social pode acentuar-se se a distribuição dos rendimentos não for justa?
ABC – Teoricamente pode. A maneira como a população portuguesa está a encarar o que se está a passar tem sido mais no sentido de tentar “aguentar a barra” do que entrar numa linha de revolta. Mas é muito difícil dizer até onde é que esta resistência pode ir.
AE – Bento XVI considera que “não se pode sacrificar a pessoa para alcançar um bem particular, seja ele económico ou social”. Em Portugal o Governo está a impor sacrifícios em nome da baixa do défice…
ABC – Exatamente. Esse é um problema chave no modo de entender o que se passa em Portugal. Todos nós devemos respeitar a dignidade da pessoa humana, e até há políticos que, a esse respeito, têm usado a palavra “incontornável”, isto é, que não pode ser sacrificada de modo nenhum. Mas na prática a questão é saber que tipo de medidas, cujos objetivos são económicos ou financeiros, atinge ou não o respeito pela pessoa.
Um exemplo muito claro é o problema das sobras dos medicamentos que estão a seis meses do fim do prazo de validade, que ou são utilizados com fiscalização ou não; se são, que entrem no mercado e não sejam apenas destinados aos pobres; se estes não os utilizarem, o destino dos medicamentos é irem para a reciclagem – ou para o lixo, usando o sentido lato da palavra. Dando-os só aos pobres, estes estão a ser um substituto do lixo. E isso é claramente ofensivo da dignidade humana. Mas é preferível não dar?, perguntam alguns. Penso que este é um falso dilema. Portugal, que não é um país do terceiro mundo, tem recursos suficientes para dar medicamentos aos pobres, que não precisem de ser nem restos nem sobras. E pior é quando me dizem que esta é uma forma de evitar o desperdício, porque não é só com os pobres que ele se resolve.
AE – A política económica do Governo opõe-se às posições citadas de Bento XVI na mensagem para o Dia Mundial da Paz?
ABC – A situação está como estava antes. O problema não é só deste Governo mas radica no tipo de economia das últimas décadas. A atitude do Executivo agravou a questão porque se sentiu obrigado a tomar medidas gravosas devido aos objetivos do défice e da dívida. Mas o que está em causa é algo de estrutural. Bento XVI diz claramente que o lucro não pode ser a única finalidade da atividade económica. E se ele não é o único objetivo, é certamente o principal, o que contraria uma economia ao serviço das pessoas. É uma preocupação que se aplica à maior parte dos países.
AE – É difícil implementar em Portugal uma política baseada na Doutrina Social da Igreja, dada a dependência do país em relação ao sistema económico que rege a maior parte dos Estados?
ABC – A Doutrina Social da Igreja vai contra o sistema. A dificuldade não está na impossibilidade de a aplicar mas no modo como ela pode ser executada. O mais recente documento do Vaticano sobre a economia mundial (1) mostra-o com muita clareza: não só aponta objetivos como diz que têm de ser atingidos de forma gradual e sensata, apontando alguns passos nesse sentido. Temos de ter muito claro o que é uma economia ao serviço das pessoas e, a partir daí, cumprir uma estratégia compatível com uma estabilidade que as sociedades precisam, mesmo quando atravessam transformações profundas.
AE – A mensagem para o Dia Mundial da Paz tem por título “Educar os jovens para a justiça e a paz”. Os apelos à emigração dirigidos por parte do Governo às novas gerações satisfazem o propósito de consolidar a paz social, sobretudo entre a juventude?
ABC – É uma estratégia de quem desistiu e declara a sua derrota. O problema do emprego é um dos objetivos principais de qualquer economia e é anterior à busca do lucro. Este apelo é uma claudicação muito precoce e um mau sinal enquanto atitude de um governante perante os problemas do país.
AE – A revista norte-americana “Time” escolheu “o manifestante” como figura do ano, atendendo ao envolvimento popular em protestos de ordem política, social e económica. É de esperar que os jovens intensifiquem o mesmo tipo de ações em Portugal, face ao estreitamento das suas perspetivas de futuro?
ABC - É difícil prever. Mas acho curioso o que li no site do Washington Post sobre o documento em que o Vaticano se pronuncia sobre a economia. Uma articulista questiona se a Santa Sé toma posição ao lado dos manifestantes que escolheram o slogan “Ocupem Wall Street” [EUA]. Um dos bispos que apresentou o texto disse que era natural a existência de algumas coincidências entre os objetivos desses manifestantes, muitos dos quais jovens, e as preocupações do documento (2). Chegamos a um ponto em que, a brincar, até se diz que qualquer dia o Papa é bem capaz de ir manifestar-se à Wall Street.
RJM
NOTAS:
(1) Nota do Conselho Pontifício “Justiça e Paz” intitulada “Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspetiva de uma autoridade pública de competência universal”, publicada em 24-10-2011.
(2) De acordo com Elisabeth Tenety, do blogue “On Faith”, o presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, o cardeal ganês Peter Turkson, disse à publicação norte-americana National Catholic Reporter que “‘o sentimento básico’ por trás dos protestos está em linha com o ensinamento social católico e com o novo documento [da Santa Sé] sobre as finanças globais”.
Dia Mundial da Paz Bento XVI