Entrevistas

Site da música também ajuda a evangelizar

Jornal da Madeira
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O projecto tem apenas três anos, mas já se tornou um local de consulta indispensável para os profissionais e apreciadores da “boa música”. No site www.meloteca.com encontra-se toda a informação possível, desde a biografia de compositores, a apresentação de instrumentos, documentação especializada, até a agenda diária de concertos. “A divulgação da música portuguesa numa perspectiva transdisciplinar e descentralizada”, é um dos objectivos segundo o segundo criador deste trabalho, António José Ferreira, em entrevista ao JORNAL da MADEIRA. JORNAL da MADEIRA — Como nasceu a "Meloteca"? António José Ferreira — As raízes da Meloteca encontram-se na minha paixão antiga pela música e as novas tecnologias, na aquisição persistente de livros, registos e instrumentos, e nos estudos que venho fazendo há mais de 15 anos. A partir da tese de Mestrado sobre “Música Litúrgica e/ou Música Sacra” e do artigo sobre Música escrito para a obra “A Igreja e a Cultura Contemporânea”, editada em 2000, têm-me sido encomendados regularmente trabalhos nesse domínio. Como professor, o contacto com colegas das artes e do “webdesign” reforçou a minha convicção de que as novas tecnologias são fundamentais para a educação, a cultura e o desenvolvimento. Comecei a estudar, na medida das possibilidades, áreas da Informática novas para mim. Em Setembro de 2003, foi lançado de modo incipiente o sítio www.meloteca.com, que superou, em dois anos e meio, as minhas melhores expectativas. A edição digital dava-me a possibilidade (e a exigência) de melhorar todos os dias e os custos eram baixos, em comparação com as edições convencionais. Mas a verdade é que eu também não imaginava o trabalho que a Meloteca me iria dar. JM — Que objectivos se pretendem através da Meloteca? AJF — Os objectivos são a divulgação da música portuguesa numa perspectiva transdisciplinar e descentralizada, a afirmação da cultura portuguesa no ciberespaço e o fomento da música na lusofonia. A Meloteca destina-se a todos os que partilham um gosto sério pela música. As crianças e jovens podem testar os seus conhecimentos através de jogos para a disciplina de Música e Educação Musical, os compositores, intérpretes e musicólogos podem divulgar e conhecer a vida de outros músicos e outras actividades, os agentes litúrgicos têm acesso a diversos artigos e à legislação do Magistério sobre Música. Evangelização na Internet um púlpito à escala global JM — A presença da Igreja e da Música Sacra na Internet é necessária para a evangelização no nosso tempo? AJF — É fundamental. Como qualquer ferramenta, a Internet tem os seus riscos, mas apresenta vantagens impressionantes. A presença da Igreja no mundo, como factor de sentido e de esperança, passa muito pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Pessoalmente, recebo mensagens a pedirem ajuda sobre critérios para seleccionar cânticos, partituras de hinos, informações sobre cursos. Dialogar com pessoas que vivem no Japão, Taiwan, Alemanha, Singapura, Brasil, Espanha, é algo fascinante. A Meloteca torna-se assim um factor da paz e desenvolvimento à escala global. Com a informação que já tem, o Sítio da Música presta um serviço valioso reconhecido por excelentes músicos e o próprio Ministério da Cultura. Mas é um sítio independente e voluntário, que está praticamente a começar. No âmbito eclesiástico, há muito a fazer, tanto na Música Sacra como na Evangelização através das novas tecnologias. JM — O que distingue a música sacra de todas as outras? AJF — De facto, muita música “clássica” profana é influenciada pelo canto gregoriano e a tradição polifónica da Igreja. Por outro lado, a música popular influencia a música “erudita” e a própria música litúrgica de hoje. A distinção entre música sacra e música profana não é totalmente clara. Numa definição simplista, a Música Religiosa inspira-se em temática religiosa, a música sacra é música que, mesmo tendo sido litúrgica no passado, já não se identifica com os objectivos de participação da assembleia ou com as perspectivas eclesiológicas actuais. Litúrgica é a música que, baseada essencialmente nos textos sagrados da Bíblia e da Tradição, serve a celebração das comunidades cristãs actuais. Igreja deve apoiar mais os compositores JM — A composição musical portuguesa, na actualidade, está bem representada? AJF — Na música erudita contemporânea há muita criatividade, reconhecida internacionalmente em alguns casos, como Emanuel Nunes. Há uma plêiade de jovens compositores. Mas o país é pequeno, e as pessoas que ouvem ou compram música erudita contemporânea não são muitas. As obras sacras ou religiosas, na Música Erudita, são escassas, destacando-se as do compositor Sérgio Azevedo. Em parceria com outras instituições, a Igreja tem a obrigação de promover festivais, apoiar ciclos de música Sacra e fomentar a criação artística, encomendando obras aos grandes compositores. Na Música Litúrgica, destacam-se, entre os vivos, António Ferreira dos Santos, Carlos Silva, António Azevedo Oliveira, Fernando Lapa, Fernando Valente. Para as dimensões do país, não haverá falta de compositores litúrgicos mas de tempo: normalmente, estão ocupados com muitas actividades pastorais. Celebrações exigem mais qualidade JM — Na sua opinião, que progressos se têm verificado nas celebrações litúrgicas, no que se refere à música? AJF — Eu contacto com muitos músicos, e a ideia que têm da música litúrgica é, geralmente, negativa. A teoria eclesiástica sobre música é abundante, mas faltam escolas diocesanas e, nas que existem, falta, muitas vezes, qualidade. Muitos órgãos de tubos têm sido restaurados (por vezes, muito mal), mas faltam organistas e sensibilidade a um património riquíssimo para a promoção de concertos e o acompanhamento litúrgico. As celebrações transmitidas pela Rádio e pela Televisão devem ser exemplares, como a actividade litúrgico-musical das catedrais e igrejas mais importantes. O nível musical dos portugueses elevou-se em média, graças aos conservatórios, academias e escolas superiores de Música. Mas, em termos estruturais, a situação não se alterou muito na Igreja. As catedrais e as grandes igrejas ainda não são factor de desenvolvimento, com escolas de música, organista titular, director de coro. Nestas circunstâncias, que estímulo e perspectivas existem para alunos formados na Escola das Artes da Universidade Católica ou para organistas, formados em Portugal ou no estrangeiro? Vocação musical e enciclopédia JM — A sua vocação musical surgiu cedo e foi desde logo apoiada? AJF — Surgiu cedo, num ambiente rural em que ainda se cantava nas desfolhadas e se tocava concertina ao pisar das uvas. Na igreja, especialmente nas festas, o som do harmónio apresentava harmonias fascinantes. A formação dada no seminário era pouco profissional, e autodidacta no que se refere a instrumentos (piano ou órgão). Se tivesse tido condições, teria feito mais cedo o Conservatório. A verdade é que sem o apoio da minha família, a evolução dos últimos anos seria impossível. Em termos profissionais, há muitos conhecimentos adquiridos que me parecem inúteis. De alguma forma, os meus longos anos de estudo, incluindo a Teologia, a apetência pelas línguas, o gosto da arte, literatura, história, filosofia ganham sentido e coerência na Meloteca. JM — Quais os compositores que elege como "mestres" intemporais? AJF — Na História da Música, Bach é essencial, Mozart é um milagre e Beethoven é fascinante, com o seu génio e sentido de liberdade. O meu filho já ouve composições deles: aliás a pesquisa científica atribui-lhes propriedades terapêuticas tanto nas crianças como nos adultos. Na Música Portuguesa, gosto muito de ouvir João Domingos Bomtempo, Carlos Seixas, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes-Graça, Eurico Carrapatoso. JM — Que trabalhos está a preparar neste momento? AJF — Além das aulas de Música e Educação Musical, que enriquecem e são enriquecidas pelo projecto Meloteca, estou a rever artigos para a “Enciclopédia da Música em Portugal no século XX”, a editar pelo Círculo de Leitores. Em vista de trabalhos que me são pedidos (e pelo facto de ter um bebé de 19 meses), estou a aprofundar a investigação sobre música com crianças e bebés, actividades, brincadeiras, instrumentos musicais. Mas a Meloteca é, com o acervo que já tem e os documentos que não são apenas digitais, um projecto envolvente. Com apoios financeiros que espero obter nos próximos anos, ao abrigo da Lei do Mecenato, acredito que a Meloteca se elevará a um patamar de excelência internacional para divulgação da cultura portuguesa no mundo.


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