Entrevistas

Uma década com muitas mudanças

Paulo Rocha
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D. Jorge Ortiga, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), admite que a Igreja Católica já não é uma força maioritária

Para o arcebispo de Braga, ela tem de situar-se  num contexto de adversidades e contratempos, porque nem tudo facilita o encontro com a própria fé.

Em declarações à Agência ECCLESIA, D. Jorge Ortiga defende que o confronto com uma mentalidade nova deve levar a Igreja a repensar-se, sem abdicar dos seus princípios fundamentais

Agência Ecclesia – Na primeira década do  3.º milénio, descobre  mudanças significativas na sociedade portuguesa, nomeadamente relacionadas com a presença da Igreja Católica?

D. Jorge Ortiga – Sem dúvida! Fruto da globalização, o secularismo invadiu os circuitos da sociedade. Com ele o relativismo impôs-se. E a Igreja Católica já não é uma força maioritária. Ela tem de situar-se também num contexto de adversidades e contratempos porque nem tudo facilita o encontro com a própria fé.

Por outro lado, fruto dessa globalização e da integração na União Europeia, a situação económica transformou muitos hábitos e comportamentos: gerou um consumismo desenfreado por parte de alguns e uma desigualdade crescente.

Quer a sociedade quer a Igreja estão situadas num contexto totalmente diferente.

 

AE – Cresceu uma pressão social sobre questões fracturantes que motivou um desfecho diferente do esperado pela Igreja Católica?

JO – Por temperamento sou optimista e olho para a História com os olhos da fé. Creio que estamos a viver a Graça do Concílio Vaticano II [1962-1965], que integrou a Igreja na sociedade, alertando-a para a necessária inculturação. A Igreja confronta-se como nunca com uma mentalidade nova.

 

AE – Nesta década?

JO – Sim, essencialmente. O que obriga a Igreja a repensar. Não a sua moral e os seus princípios fundamentais. Antes a reinterpretá-los, mantendo a sua identidade e a sua especificidade e encontrando novas respostas através do diálogo e conhecimento multidisciplinar. O que é desafiante para a Igreja!

A fé faz-nos compreender que esses problemas fracturantes (nos) interpelam-nos e (nos) questionam-nos, não para procurar uma nova moral, mas  para fazer com que a moral católica de sempre, nos seus valores essenciais, possa ser defendida e praticada sem cedências.

 

AE – Mas qualquer mudança no campo da moral poderá soar sempre a uma cedência…

JO – Como disse, a Igreja sente-se cada vez mais interpelada, sobretudo desde o Concílio Vaticano II, por tudo o que acontece na sociedade actual.

 

AE – Mas isso quer dizer que a Igreja tem de mudar?

JO – Não se trata de cedências (quero sublinhar isto porque a Igreja tem de ser fiel à doutrina de sempre, tem de sublinhar a sua diferença). Mas por causa do Concílio Vaticano II e de uma mudança cultural que aconteceu tão rapidamente, e ao contrário de um dogmatismo que havia antes, a Igreja, sendo fiel à doutrina, terá de alterar o modo de a comunicar e anunciar.

 

AE – De a viver também?

JO – Consequentemente!

Por exemplo, no que respeita à sexualidade, a Igreja tem de reformular a sua linguagem. Não tenho dúvida absolutamente nenhuma. A Igreja terá de partir de um conceito mais positivo, de uma teologia do próprio corpo.

Há um caminho a percorrer, que não caracterizo de cedência mas de adaptação da linguagem, em consonância com dados da ciência que hoje nos são oferecidos.

 

AE – Há questões concretas que se podem colocar neste âmbito, como a inclusão nos sacramentos dos casais “recasados”…

JO – Eles podem frequentar a vida religiosa, nos actos de culto, como qualquer outra pessoa. O que lhes é vedado é poder aceder à comunhão, significando que não estão em plena comunhão com a Igreja.

Penso que, porventura, para os casos onde não se chegue à nulidade do casamento – o caminho que a Igreja aconselha – pode chegar-se a uma outra medida para um acolhimento mais concreto da sua situação. É um campo onde teremos de reflectir, deixando-nos conduzir pelo Espírito, sem cedências àquilo que é a doutrina.

 

AE – Uma questão, de debate recente, é o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Que desafios coloca?

JO – A Igreja dirá sempre que o casamento é uma união entre um homem e uma mulher, alicerçada no amor (ao contrário do passado, a Igreja sublinha hoje o amor como a dimensão essencial do casamento) e orientada para a procriação responsável.

Sem nunca ceder a novas tendências, a Igreja é desafiada a compreender, a acompanhar, a ajudar, a saber estar com essas uniões que possam vir a acontecer.

 

AE – Que comentário lhe merece o facto do processo legislativo em curso sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo poder concluir-se no contexto da visita do Papa a Portugal?

JO – É um dado adquirido que isso vai acontecer. O que não faz com que a Igreja mude a sua maneira de pensar. Pastoralmente, a Igreja tem de ver como vai relacionar-se com essas pessoas.

É uma coincidência como tantas outras, que não afecta o comportamento da Igreja.

 

AE – Mas não é uma manifestação de força por entidades ou ideologias contrárias à da Igreja?

JO – Se sim, é de lamentar! Chegar a esta conclusão antes ou depois da visita do Papa é a mesma coisa: é um dado com o qual teremos de saber conviver.

 

Pensamento Novo

AE - Na abertura da última Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa [12 de Abril], falava na necessidade de promover um pensamento novo, seguindo o Papa Bento XVI. O que está em causa?

JO – Aquilo em que este Papa mais enriquece a Igreja é o facto de ser portador de um pensamento original.

Nós, na Igreja, tínhamos um pensamento que chamamos escolástico. Este Papa, nesta nova época, propõe um outro tipo de pensar, a partir da evolução histórica e dos desafios da modernidade. Apresenta um novo modo de pensar que deverá ser fonte de um novo modo de agir.

O Papa também refere que este pensamento global, onde tudo é tido em consideração (as diferentes formas de interpretar a vida na área da filosofia, da economia, da educação), nunca poderá desconsiderar a fé, que dá uma compreensão mais profunda a esse pensamento e abre horizontes para uma compreensão total da realidade. Daqui surgem comportamentos que são totalmente novos. Não há a coragem de aceitar este novo pensamento do Papa e por isso não se olha para alguns problemas referidos por Bento XVI com insistência (basta olhar para a última Encíclica, Caritas in Veritate).

 

AE – Que consequências pode trazer esse pensamento à organização da própria Igreja? Por exemplo no exercício do ministério do Papa?

JO – Já o Papa João Paulo II pedia, também a outras confissões cristãs, que o ajudassem na reflexão sobre o poder central que é Roma…

Na linha do que o Concílio Vaticano II referiu e tendo em conta o pensamento da Igreja presente nas encíclicas papais, estou convencido de que nos deparamos com uma Igreja que é comunhão orgânica e hierárquica.

Há aqui uma novidade muito grande, que faz com que a realidade do ministério Petrino, a realidade de Roma, seja essencialmente um serviço e não um centro de decisões.

 

Repensar a Acção Pastoral da Igreja

AE – Que linhas de rumo se vão apontando ao repensar a acção pastoral da Igreja em Portugal?

JO – A história deste “repensar a acção pastoral da Igreja em Portugal” é um assunto que já tem alguns anos. Desde que assumi a presidência da CEP propus-me este objectivo como primeiro, para que na diversidade das Igrejas, que se aceita, haja um programa comum que cada uma assimile e aplique ao concreto da sua situação. Temos vindo a reflectir sobre o tema em várias ocasiões e a fazer caminho.

Em particular, na última visita ao Papa (2007) fizemos uma pequena assembleia extraordinária da CEP no Colégio Português para reflectir sobre a urgência de uma pastoral nova para tempos novos. Há aqui uma mudança cultural à qual terá de corresponder uma maneira diferente de agir, por parte da Igreja. O próprio Papa estimulou-nos, com as palavras que nos dirigiu.

 

AE – Nessa ocasião, Bento XVI disse que era necessário “mudar o estilo de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros”…

JO – Fazendo referência a essa frase, penso que a estamos a concretizar porque temos vindo a caminhar, em variadíssimas reuniões.  Aquilo que agora está determinado e acolhido por todos os Bispos é que vamos, particularmente a partir deste ano, fazer um “itinerário sinodal”. Vamos caminhar, mas caminhar juntos, as 21 Dioceses, procurando ouvir aquilo que o Espírito quer dizer hoje a cada uma das Dioceses e a Portugal.

É um trabalho conjunto que está a envolver os Bispos e que queremos que chegue aos conselhos presbiterais, conselhos pastorais, movimentos, institutos religiosos, num processo de discernimento pastoral, e não só de estudos feitos.

Queremos envolver o povo para poder apresentar um projecto, um plano pastoral, não apenas para uma Diocese mas para todas.

 

AE – E será possível que todas as dioceses cumpram o mesmo plano?

JO – Sim, na medida em que ele encerra uma ideia chave, mestra, com algumas coordenadas. Mas depois cada Diocese terá a sua autonomia para fazer o seu plano. Uma coisa é certa: gostaríamos que ao falar de determinadas realidades, a mesma palavra fosse utilizada no Norte e no Sul do país.

Esperamos que o Papa, na sua próxima visita, nos traga algumas ideias e também a força e a coragem para ultrapassar as dúvidas que possam subsistir quando à aplicação de um projecto comum.

 

AE – Esse projecto poderá ter implicações na autonomia de cada Diocese…

JO – Não, não queremos isso porque uma das grandes novidades do Concílio Vaticano II está precisamente no facto de a Igreja estar toda na Igreja particular. Não vamos destruir certas caracterizações e manifestações de ordem sociológica. Cada uma terá de ter o trabalho de aplicar à sua realidade aquilo que for assumido por todos.

 

AE – Os responsáveis pela Igreja Católica em Portugal estarão a aprender a trabalhar em conjunto, efectivamente?

JO – Penso que não se trata de aprender, trata-se de o fazer porque tudo isto leva já alguns anos e os que estão mais directamente implicados na coordenação pastoral das Dioceses é que deram origem a este corpo de ideias, de pensamento.

 

AE – É novo o facto de o debate envolver dados da sociologia ou da psicologia e não só da teologia?

JO – Temos tido isso em consideração e as próximas Jornadas Pastorais do Episcopado [14 a 16 de Junho] procuram saber o que é que as diversas áreas do pensar  sugerem como interpelações para o nosso agir pastoral. Ao recorrer a peritos, homens da sociedade, mesmo que não plenamente identificados com a Igreja Católica, queremos ouvir as questões que as diversas áreas do saber nos lançam porque nos faz falta ouvir gente de fora.

 

AE – A experiência da fé, nos dias de hoje, tem de ser fundamentada de forma interdisciplinar?

JO –Já o referi e continuarei a sublinhar essa mesma ideia, a que temos de estar atentos. É por isso que hoje, na Igreja, é importante o reconhecimento não só dos carismas mas também da competência em cada área, em cada sector.

 

AE – Da visita Ad Limina [a Bento XVI] saiu ainda um desafio em ordem a um “recto ordenamento da Igreja”. Na sua opinião, o que é que está em causa neste alerta de Bento XVI?

JO – É um aspecto que cada Bispo terá de estudar. Alguns pensavam que seria uma referência à criação de novas Dioceses. Pessoalmente estou convencido que o Santo Padre estava a dizer-nos que seria necessário encontrar formas novas de assistência às pessoas que vivem nas paróquias pequenas, algumas situadas em zonas totalmente desertificadas. Nas várias Dioceses há um esforço para não destruir a autonomia dessas paróquias – porque iríamos criar problemas – sublinhando a importância daquilo que chamamos as unidades pastorais, isto é, um sacerdote com cinco ou seis paróquias, cada uma com a sua autonomia, onde se articulam os serviços e o trabalho é feito numa reorganização diferente.

 

AE – Isso inclui também uma repartição de responsabilidades por pessoas diferentes?

JO – Nessa reorganização é preciso acreditar que um padre é muito mas não é tudo. Um leigo tem também o seu lugar, o seu espaço, as suas responsabilidades e terá de assumi-las. Não é apenas um aproveitar-se dos leigos, mas reconhecer a sua vocação insubstituível.

 

AE – Também com responsabilidades efectivas na comunidade?

JO – Sim, com certeza. Por exemplo, na celebração da fé do Domingo, na celebração da Eucaristia, como responsabilidade própria confiada a alguns. Com certeza que isso não deixará de acontecer.

 

AE – E quanto a mulheres no sacerdócio, pensa que é um assunto encerrado?

JO – Eu sei que o Santo Padre, Bento XVI, o considera encerrado e, neste momento, nós também devemos fazer o mesmo, na certeza de que a mulher desempenha na Igreja um papel impressionante. Que amanhã, por isto ou por aquilo, venha a sentir-se essa necessidade, não sei…

 

AE – Ficaria surpreendido se isso acontecesse?

JO – Não seria necessário. Às vezes algumas pessoas falam na promoção da mulher, mas não vejo isso assim. Hoje são tantas as mulheres que trabalham na vida da Igreja, com papéis insubstituíveis. Há uma presença feminina muito grande.

 

Alargar as fronteiras do diálogo

AE – Nos últimos anos têm surgido iniciativas de diálogo inter-religioso, como programas na comunicação social, nas capelanias hospitalares… É uma oportunidade ou um obstáculo à acção da Igreja?

JO – Para nós é uma convicção, ainda que porventura há 50 anos não fosse. É o consciencializarmo-nos do mundo em que estamos naturalmente inseridos.

Não esqueçamos que, mesmo na regulamentação da Concordata, fomos nós, Igreja Católica, a trabalhar para que se pudesse servir adequadamente os portugueses no âmbito religioso. Aquilo que a Igreja procurou para si, procurou também para os outros.

O Concílio Vaticano II é eloquente sobre o diálogo ecuménico, o diálogo inter-religioso e com os diferentes. São áreas em que a Igreja terá de viver permanentemente.

Talvez outrora, em Portugal, se pensasse que a Igreja tinha de ser quase que exclusiva. O que importa é que cada um siga o seu caminho para Deus, no encontro com a Palavra, com tantas outras realidades, e que a Igreja Católica possa dispor da liberdade e dos meios adequados para exercer o seu serviço.

 

AE – Nesse âmbito, as relações com as entidades públicas são boas?

JO – Sim. A regulamentação da Concordata demonstra-o.

 

AE – Apesar de não estar concluída?

JO – Faltam alguns aspectos que precisam de ser equacionados, como o património e as aulas de Moral. Mas já há regulamentação na parte hospitalar e nos estabelecimentos militares e prisionais.

A própria Concordata estabelece uma comissão paritária que já está a trabalhar no sentido de interpretar os textos. Infelizmente, a comissão bilateral ligada ao património não tem funcionado, e eu não sei porquê! Da nossa parte as pessoas estão determinadas. Estamos à espera… Têm surgido algumas questões relativas ao património que talvez se pudessem ter evitado.

 

Visita de esperança

AE – Que oportunidade constitui para a sociedade portuguesa e para a Igreja no nosso país a visita de Bento XVI?

JO – Creio que é um momento de grande alegria e estou plenamente convencido de que será uma ocasião de festa. Numa altura que, queiramos ou não, reconhecemos como de crise, de uma certa perplexidade e, para algumas pessoas, até de um certo medo perante o amanhã e perante o futuro, a presença do Santo Padre será também um momento de esperança. Estou convencido que a mensagem que o Santo Padre vai trazer ao país, particularmente aos católicos, dará um pouco mais de tranquilidade ao momento que estamos a viver. Mas por que não pedir também aos portugueses em geral que se abram a essa mensagem, se não para a aceitar, pelo menos para a acolher e reflectir?

Queremos caminhar com o Papa e sabemos que ele quer caminhar connosco, particularmente na área da missão da Igreja, que tem de ser desempenhada com autenticidade, com verdade, com responsabilidade.

Creio que o povo português irá corresponder a esta vinda do Santo Padre, acolhendo a sua mensagem e manifestando a grande alegria de o termos entre nós.



Bento XVI - Portugal