Entrevistas

Uma vida de Acção Católica

Luís Filipe Santos
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O Pe. Avelino Cardoso, da Arquidiocese de Braga, desfia as memórias do seu serviço junto dos trabalhadores cristãos

O Pe. Avelino Cardoso desfia as memórias do seu serviço junto dos trabalhadores cristãos, com passagens pelo Maio de 68, o Estado Novo, deixando um olhar de esperança para o futuro da Acção Católica em Portugal (ACP).

Agência ECCLESIA (AE) – A Acção Católica tem 75 anos e o Pe. Avelino Cardoso doou cerca de 50 de vida a este organismo da Igreja?

Pe. Avelino Cardoso (AC) – Não quero ser tão ambicioso. Em Setembro, de 1961 Comecei a ser assistente diocesano de Braga da Liga Operária Católica Feminina (LOCF). Dois anos depois passei a ser também assistente da LOC Masculina. Não podemos esquecer que até 1974 havia dois movimentos: feminina e masculina.

Quero sublinhar também que fiz um intervalo de três anos (1984/87). Estive em Inglaterra como capelão da comunidade portuguesa. Aí, de facto, não foi um trabalho com a Acção Católica (AC).  

 

AE – O seu «mestre» nestas andanças foi Monsenhor Horácio de Araújo?

AC – Foi ele que me chamou e esteve na génese... Mas a minha vocação nasceu em casa.

 

AE – Pois, os seus pais foram militantes da Acção Católica.

AC – Eram militantes e, ainda por cima, eram operários. A mãe tecia, num tear manual, em casa. O pai era carpinteiro. As minhas irmãs e o meu irmão trabalhavam nas fábricas têxteis. Eram todos da Acção Católica. O meu irmão – andou no Seminário alguns anos – fundou mesmo a Juventude Operária Católica Masculina (JOCM). Em minha casa só se falava de trabalho, fábricas e Acção Católica.

 

AE – Era um «Ver, Julgar e Agir» permanente e diário?

AC – Se calhar sim. (risos) Mesmo antes de tempo... Foi um privilégio. No entanto, quem me meteu o «bichinho» foi o pároco da freguesia, Mons. Horácio de Araújo, que era um homem extraordinariamente crente e amante do movimento. Ele fundou muitas secções da parte jovem nas paróquias vizinhas. Eu tinha muito tempo livre nas férias (andava no Colégio D. Diogo de Sousa) e ele aproveitava – sempre que podia – para me meter ao lado dele nas actividades da Acção Católica. Às vezes até se fazia ausente...

 

AE – Apercebeu-se das suas qualidades para trabalhar nesta área.

AC – Só sei que a vida dura de casa ajudou. Deixei de ir para o seminário em determinado ano porque «perdi» dois anos sem nunca ter reprovado. Era pobre e fiz trabalho infantil. Fui para o seminário com 14 anos (no final da 2ª Guerra Mundial), mas devia ter ido com 12 tal como os meus colegas.

 

AE – O seu pai também era um «apaixonado» pela Acção Católica?

AC – Sim. A minha mãe era mais caseira. Tinha o espírito da Acção Católica porque os filhos e o marido falavam muito da AC sobretudo das reuniões e da revisão de vida.

 

AE - Nos primeiros passos da AC foi participar, em Fátima, numa semana de estudos da JOC e JOCF. Lá encontrou pessoas que o marcaram?

AC – O Pe. Jardim Gonçalves e o dr. Narciso Rodrigues que eram assistentes nacionais destes movimentos. Vim de lá profundamente tocado. Olhei para duas pessoas grandes demais para mim. Valeu a pena ir a Fátima só para conhecer aquelas duas figuras que foram assistentes extraordinários.

 

AE – Passado algum tempo, o D. Francisco Maria da Silva (Bispo de Braga) convidou-o para novas funções.

AC – Em Setembro de 1961 chamou-me ao Paço Episcopal para me pedir que aceitasse ser assistente da LOCF da diocese e uma espécie de adjunto do assistente diocesano da JOCF.

 

AE – Quantos anos esteve a desempenhar esse cargo?

AC – Estive 5 anos. Em Julho de 1966 fui para Paris para assistente das Equipas Apostólicas Portuguesas (nome dado à JOC, JOF e LOC constituídas entre os emigrantes).

 

AE – Ainda se recorda da frase “avança Avelino que aquilo é melhor do que frequentar uma universidade”?

AC – Lembro-me muito bem. Como estava indeciso – demorei bastante tempo a responder ao convite – o Dr. Narciso Rodrigues disse aquela frase que pesou muito e fui.

 

AE – Partiu, mas passados três anos voltou a Braga.

AC – O D. Francisco da Silva disse-me: “Vais, estás lá dois anos, no máximo três, e voltas porque preciso de ti aqui”. O nosso «patrão» é o bispo e tive de obedecer.

 

AE – Aquela frase premonitória concretizou-se?

AC – Sim. Foi uma abertura a todos os níveis: eclesial (a Igreja de França era muito aberta), Acção Católica Operária e no mundo do trabalho. Já não falo do mundo da emigração porque não fui para ser missionário dos emigrantes. Fazia isso voluntariamente... Tínhamos uma relação muito profunda com os dirigentes e assistentes da Acção Católica Francesa.

 

AE – Saiu de um país periférico para sentir as influências do «Maio de 68»?

AC – Eu vivi o «Maio de 68». Foi uma surpresa para toda a gente. Começou pelos estudantes, mas alargou-se por todas as classes sociais. Recordo porque me marcou muito as palavras do cardeal de Paris. Às vezes, no final do dia, andava disfarçado nas ruas para ver o que se passava. Na festa do Corpo de Deus fez uma homilia muito interessante: “nós, os cristãos não podemos estar a olhar para o céu. Temos de olhar para o mundo e, neste momento concreto, ele é complicado... No entanto não podemos esquecer que há cristãos no meio dos trabalhadores, no meio dos polícias, no meio dos estudantes....”. Como há cristãos em toda parte, a Igreja não pode estar alheia a essa gente toda.

 

AE – Depois desta brisa teve de voltar...

AC – Regressei e passei a trabalhar com o Pe. António Domingues e o Pe. António Silva. Naquela altura estávamos três padres livres para a Acção Católica. Eu tinha a parte adulta operária e, dois dias por semana, dava ajuda aos alunos de Filosofia.

 

AE – Em 1970 recebe uma carta do seu bispo que clarifica tudo.

AC – Na missiva, D. Francisco dizia que podia fazer o quartel-general em Ronfe (a minha terra natal), para os trabalhos da Acção Católica. Com a carta depreendi que a minha missão era a Acção Católica. Correspondeu a uma opção de vida. O mundo operário merecia um padre livre.

 

AE – Com essa disponibilidade ia para as fábricas evangelizar?

AC – Não ia com frequência, mas cheguei a ir, especialmente com padres franceses da Acção Católica. O essencial do meu trabalho era estar nas reuniões e ter tempo para acompanhar os militantes fora delas.

 

AE – Foi o período áureo da Acção Católica Portuguesa?

AC – Estava no auge porque tinha muita gente, mas quando se começou a depreender as orientações conciliares -  sobretudo a «Lumen Gentium» e a «Gaudium et Spes» - e o papel específico dos leigos - a sua acção transformadora do mundo -  muita gente começou a hesitar e, posteriormente, começou a sair. Meter-se no mundo é complicado...

 

AE – Estes documentos conciliares são a razão da debandada na Acção Católica?

AC – Não queria dizer tanto. Pareceu-me que muita gente saiu por não conseguir entrar nessa dinâmica. Lembrou-me que andámos – cerca de dois anos - pela diocese a dar formação sobre o 1º capítulo (Dignidade Humana) da «Gaudium et Spes». Foi uma espécie de revolução.

 

AE – As suas palavras e mãos moldaram muitos cristãos bracarenses?

AC – Tenho algum pudor falar nisso, mas creio ter dado algum alento. Penso que ajudei muita gente a crescer ao nível da fé, do compromisso e do empenhamento.

 

AE – Em 2005, quando deixou a Acção Católica chorou?

AC – Visivelmente não, mas lá dentro... Cheguei a dizer ao mesmo bispo que não queria ser uma pessoa que se arrastasse no lugar.

 

Acção Católica e Estado Novo

AE – A Acção Católica teve problemas com o Estado Novo? Algumas vezes, António Salazar manifestou-se contra este organismo.

AC – Se pensarmos em termos de censura... Só isso já era um sinal muito claro que as coisas lhe agradavam por aí além. É lógico.

 

AE – O «Ver, Julgar e Agir» abriam os olhos aos cristãos e intimidavam Salazar?

AC – Especialmente, quando a «Revisão de Vida» se fazia em profundidade. Temos de concordar que nem sempre era fácil nem possível fazer os três tempos, mas quando isso acontecia era a grande escola de formação dos leigos.

 

AE – Os direitos e os deveres estavam presentes?

AC – Sempre quis ajudar para que os militantes se distinguissem dos outros trabalhadores na maneira como defendiam os seus direitos e cumpriam os seus deveres.

 

AE - Os patrões não gostavam muito dos militantes da AC porque eles estavam informados?

AC – Isso é normal. Se eles fossem menos instruídos e menos elucidados era bom para os patrões.

 

AE – Quando os militantes da AC queriam fazer greve tentava demovê-los?

AC – Nem demovê-los nem empurrá-los. Procurava que eles medissem bem as circunstâncias e o que estava por detrás de uma ordem de greve. No entanto alertava que o dever da solidariedade com outros é um dever importante na vida cristã.

 

AE – Olhavam para o Pe. Avelino Cardoso como líder?

AC – Talvez não. Mais como formador e alguém que procurava iluminar e ajudar a ver claro.

 

AE – A Acção Católica abrandou e deu lugar aos movimentos espiritualistas?

AC – É mais fácil trabalhar dentro da Igreja do que trabalhar cá fora, no mundo. Eu não estranho isso...

 

AE – A Acção Católica já morreu ou atravessa uma fase difícil?

AC – Não. Não morreu nada. Precisa é de se rejuvenescer nalguns sítios.



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