Cinema: A batalha de Tabatô
‘Há 4500 anos, enquanto tu fazias a tua guerra, criámos a agricultura. Há 2000 anos, enquanto tu fazias a tua guerra, criámos a boa governação dos reinos. Há 1000 anos,enquanto tu fazias a tua guerra, criámos as bases do reggae e do jazz. Hoje, superando a tua guerra, construiremos contigo a tua paz.’
Assim começa ‘A Batalha de Tabatô’, galardoado em Cannes com uma Menção Honrosa na categoria de primeira obra, reafirmando João Viana (realizador de ‘A Piscina’, 2004) como um dos mais interessantes realizadores do cinema de expressão portuguesa do nosso tempo.
Nascido em Angola em 1966 e filho de pais portugueses, João Viana escolheu a Guiné para, simultaneamente, sua primeira longa e a sua quarta curta metragem, ambas selecionadas, por diferentes comités, para competição em Cannes. A extraordinária riqueza cultural da Guiné e a diversidade de grupos étnicos – mais de trinta – com os seus hábitos e costumes até hoje tão preservados, são, nas palavras do próprio, um fator de atração determinante para um contador de histórias como se considera. Formado em direito, desbrava os caminhos do cinema como autodidata, defendendo que o mais importante a fazer num filme não se aprende nas escolas de cinema.
‘A Batalha de Tabatô’, uma obra entre o documental e a ficção, fortemente enraízada na essência identitária de uma aldeia de músicos que cumpre a arte musical como vivência e garante da harmonia entre as pessoas – cada qual com seu lugar, todas juntas numa sintonia possível – é uma incrível metáfora da atual situação da Guiné: inclui o peso e o horror da guerra, explicitado no trauma, também ele enraízado, de uma personagem que não se consegue libertar dessa memória e aponta o amor e a arte como claros caminhos de resgate, se não de cada personagem, da alma de um povo.
A história é a de Fatu, do seu noivo Idrissa e do seu pai, Baio. Fatu é professora universitária e o noivo, Idrissa, um músico de Tabatô – uma aldeia de músicos, aristocratas que entendem a música como fiel da justiça e da concórdia entre os povos. Regressado de Portugal, Baio chega à Guiné para o casamento da filha. Consigo traz apenas uma mala. O seu regresso, após décadas de ausência, fá-lo reencontrar-se com as memórias horríficas da guerra que ali viveu. Apesar das tentativas de Fatu, e enquanto Idrissa e os músicos de Tabatô se preparam para a celebração de um sacramento que fecundará um futuro selado pelo amor, a esperança, a concórdia e a paz, Baio trava uma trágica batalha com os seus demónios, arriscando sacrificar o futuro dos jovens...
A história destas três personagens é evidentemente a da própria Guiné (poderia ser a do mundo): uma batalha onde o seu presente e futuro se jogam, entre o peso de dois passados identitários que exprimem as possibilidade de Bem e de Mal (a arte e a guerra), da edificação ou da destruição... filmado a preto e branco, os contrastes são evidentes e apenas pontuados por um gritante vermelho que evidencia o grau de tragédia do que se joga nesta história, como na história do país.
Pelo pulsar de uma cinematografia bem viva e atenta ao mundo que somos, ‘A Batalha de Tabatô’ vem, mais uma vez, provar a qualidade do cinema português para o qual urge divulgação, reflexão, mobilização e investimento, não apenas nos apoios monetários concedidos à produção e distribuição nacional e internacional, mas sobretudo no acesso de novos públicos que o possam apreciar e genuinamente CRESCER consigo!
E se tarda a sua inclusão nos curricula escolares, a que a existência de um Plano Nacional de Cinema abriria alguma esperança, cabe a cada um de nós, comunicadores, educadores, animadores ou gestores de comunidades familiares, pastorais ou qualquer outra facilitar esse acesso.
Margarida Ataíde