Cinema: like someone in love
Num clube noturno de Tóquio, uma rapariga fala ao telemóvel. Fala com o namorado da jovem e bela Akiko que, não obstante a insistência do rapaz, se esquiva a precisar sobre o local exato onde está.
O dono do clube dirige-se a Akiko para lhe endereçar um novo ‘cliente’, um amigo especial que mora longe dali. Ela resiste pois nessa noite deverá encontrar-se com a Avó que veio propositadamente à capital para a ver, mas acabará por ceder. Não sem a dor de avistar, ao largo, a Avó esperando por si em vão.
Chegada a casa do tal amigo a quem foi endereçada, Akiko surpreende-se: Takashi Watanabe é um senhor de idade, viúvo, sociólogo, de ar simultaneamente respeitável e jovial, modos extremamente finos e um notório alheamento da perspetiva de uma ligação amorosa, menos ainda carnal, com a jovem rapariga.
A relação entre ambos tece-se delicadamente e em breve Akiko vislumbra novos horizontes na sua vida. Será inteiramente livre de os escolher?...
Pela segunda vez na sua carreira, depois de ‘Cópia Certificada’ (2010), Abbas Kiarostami filma fora do seu país, o Irão. Desta vez no Japão.
Cineasta das grandes interrogações, dito apolítico e ‘informe’ - difícil de espartilhar num estilo cinematográfico -, que recusa seguir os trilhos do cinema militante - como é mister de alguns conterrâneos na redução de arte a manifesto, não escusa a sua filmografia ao mais profundo olhar sobre o mundo quotidiano e nesse sentido, sim, provável e profundamente político no seu mais nobre sentido.
Surpresa, filme a filme, no seu modo de perscrutar, envolve-nos fina e profundamente neste ‘Like Someone in Love’ num Japão cuja herança material e imaterial conhecemos e um Japão atual ainda muito desconhecido: duas gerações, dois tempos e três modos (o velho Takashi e os jovens Akiko e o seu namorado) de ser japonês. A uma medida de tempo e espaço, a secular afabilidade, a sólida educação e a riqueza cultural; a outro tempo e espaço, a atabafante pressão do meio urbano, a perspetiva redutora de futuro e a ausência de sonho e ideal que abre lugar a soluções rápidas de vida, como a prostituição; a cedência do ímpeto e do fulgor da juventude à violência, na ausência de ideal.
Akiko personifica o rio que flui frágil e forte, cheio e vazio, entre estas duas margens, numa obra extraordinariamente bem filmada, a que uma aparente tranquilidade e simplicidade narrativas nada retiram do que de mais belo, mais duro ou mais trágico a história contém: questões relevantes e profundas sobre o amor, o seu lugar no mundo e a sua polimorfia, sua força e vulnerabilidade, o que suscita - Um sentido para a vida? Um sentimento de posse? Sobre a cultura, entendida como capacidade de integrar passado, presente e projeção de futuro. Ou sobre a perda- a do outro, por morte ou rejeição; a perda de referências identitárias e afetivas com o vazio que tal desenraizamento importa.
Nomeado para a Palma de Ouro de Cannes, ‘Like Someone In Love’ é, sem sombra de dúvida, pela sua qualidade estética e capacidade de interpelação humana, o melhor filme a estrear esta semana.
Margarida Ataíde
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