Cinema: Post tenebras lux
Não é um filme fácil, o seu resultado não será consensual, nem aspira à coerência, no sentido da conformidade ou equilÃbrio.
Não é um filme fácil, o seu resultado não será consensual, nem aspira à coerência, no sentido da conformidade ou equilíbrio. E no entanto, tudo tem sentido. Não à primeira vista.
Com ‘Japón ‘ e Luz Silenciosa’, Prémio do Júri na edição de 2007 de Cannes, Carlos Reygadas já nos tinha demonstrado um invulgar grau de exigência para o pleno acesso aos seus filmes, no sentido mais amplo e profundo dessa acessibilidade, que não resulta senão da mesma exigência, na sua sempre liberdade criativa, que impõe a si próprio enquanto cineasta.
Na sua primeira longa metragem, ‘Japón’ - partindo da desilusão de um homem que à beira do suicídio encontra no campo e numa mulher, Ascen, a possibilidade de redescoberta do sentido da vida -, a extraordinária combinação de realismo e misticismo, entre paisagens agrestes e de uma rara beleza, gerindo narrativa e documentário, afirmaram-no como um realizador a reter no panorama cinematográfico mexicano, reforçando a capacidade interrogativa e ascética da sétima arte. Essa nova cinematografia mexicana, que nasce com o advento do século XXI, é acompanhada por outros da sua geração (nascidos em 60/70) como Lucrecia Martel ou Fernando Eimbcke. ‘Batalha no Céu’ e ‘Luz Silenciosa’, obras seguintes de Reygadas, prosseguem o seu estilo livre, comprometido e imprevisível, fortemente empenhado no pleno uso dos recursos narrativos do cinema, que pedem muito menos meios de produção do que génio e destemor na exploração, nada gratuita, nada facilitista e nada linear, do humano e do transcendente, do trágico e do belo, com uma evidente marca religiosa – menos no que afirma do que no que questiona.
Inspirado no Livro de Job 17,12 ‘Post Tenebras Lux’ (depois das trevas, a luz, segundo a Vulgata) é o grito (e)levado ao cinema de uma humanidade desgastada pelo seu próprio ritmo e ‘progresso’, pela perda de sentido de vida, de lugar no mundo. Grito seguido de um ‘diálogo’ estabelecido entre uma família, Juan, Natalia e os filhos Rut e Eleazar, na sua experiência de deserto, e o novo espaço, interior e exterior, individual e comunitário, o novo conceito de casa, de ‘ser’ e de ‘estar’, em que se redimensionam ao partir da cidade para o campo, onde procuram nova vida.
Uma sequência de interpelações à vez enigmáticas, harmoniosas, estridentes, belas, incómodas, tocantes e cruas, que vão ganhando progressivo significado como num puzzle e que trazem aos nossos dias, à possibilidade simbólica do cinema e à nossa capacidade de reflexão e ascese, o caminho desde a devastadora experiência do mal ou do sofrimento, de que nenhum humano está isento, à portentosa capacidade de superação e transformação, no sentido da transcendência.
Com a mesma coragem com que o Livro de Job expõe o dramatismo da experiência humana e através dele descobre uma renovada experiência religiosa, Carlos Reygadas pretere as lei da conveniência e da rentabilidade, que assistem a abordagens cinematográficas ora assépticas, ora visualmente chocantes da pretensa experiência de Deus, em favor de uma profunda meditação, sem concessões, questionante e modificadora. Uma obra nascida do seu inconsciente e com muito de autobiográfico, dando corpo ao que considera ser o seu realismo, construído, nas palavras do próprio, sobre sonhos, memórias, fantasias e projecções do futuro que nunca acontecem.
Um filme definitivamente destinado a adultos, que exige uma maturidade e uma leitura muito para além do óbvio.
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