O Pe. Manuel Abreu trabalha há nove anos em Moçambique. Este missionário do Verbo divino é natural de Boi Vivo (Vila Verde) e foi ordenado sacerdote em 1967. Antes de ir para Moçambique trabalhou em Portugal e Angola.
O ano passado concluiu o seu termo de superior da missão SVD moçambicana, dedicando-se agora a tempo inteiro ao apostolado bíblico.
Contacto SVD: O Pe. Manuel vai agora dedicar-se a tempo inteiro ao apostolado bíblico. Todavia, já há muitos anos que trabalha nesta área. Pode dizer-nos o que é que a SVD tem feito nesta área em Moçambique?
Pe. Manuel Abreu: Logo ao chegarmos a Moçambique, nós tivemos a sorte de nos convidarem para pregar um retiro bíblico aos missionários de Nampula. Aceitei. Depois, o próprio Centro Catequético de Nampula também nos chamou para uns cursos de Bíblia. Aceitámos fazer esses cursos atingindo todas as paróquias da diocese Nampula. Na nossa própria missão, em Monapo, também organizámos logo um curso que durou seis meses, nos fins de semana. E depois no Liupo e Quixaxe. Também orientámos, em 2003, um seminário bíblico para todas as dioceses do país. Foi um marco. Conseguimos igualmente que os nossos bispos se inscrevessem como membros da Federação Bíblica Católica. Moçambique era o único país da África Austral sem qualquer contacto com a Federação. Pouco a pouco a Igreja de Moçambique entendeu-nos como Missionários da Palavra de Deus. Os próprios cristãos também nos começaram a chamar os trabalhadores da Palavra de Deus. Então, considerando isso uma prioridade, lançámos mão da Verbum Bible, de Kinshasa. Os padres Profiro e Lesch vieram a Monapo e deram muito apoio na preparação de apostolado bíblico, principalmente na aquisição de materiais.
Em que línguas fazem esse apostolado?
Em várias línguas. Nós recebemos a Bíblia do Jovem, em macua através da Editorial Verbo Divino, mas subsidiada pela Verbum Bible. A Verbum Bible também está a subsidiar traduções em ronga, shangana e xicopi. Há uma necessidade de ter a Bíblia nas línguas locais. Algumas traduções chegam incompletas e, pior do que isso, muitas Bíblias que andam nas mãos dos nossos cristãos vêm das seitas. Ao lado do material em línguas nativas nós temos a preocupação de ter em português uma boa tradução. E como nas comunidades há sempre alguém que sabe português, pedimos aos cristãos, que leiam a Bíblia não só na língua local mas também em português e comparem as traduções e consultem as notas para ver se com esse método de ler várias traduções nas comunidades chegamos a melhorar as traduções locais. Existe uma preocupação de melhorar, pois o que está nas mãos do povo não satisfaz.
No passado recente, a Igreja em Moçambique viveu épocas de sofrimento. Hoje numa nova situação qual o papel que ela pode desempenhar?
É uma pergunta complicada, porque aquela auréola do tempo da guerra civil em que a Igreja era salvadora da situação, aquela que trazia a comida e o remédio, já passou. Foi uma acção óptima na situação de guerra, não havia outra possibilidade na assistência médica. A Igreja foi benfeitora, mas de maneira de bastante assistencialista, como a situação exigia. Depois a Igreja foi a mediadora dos acordos de paz. Foi também um tempo óptimo para a Igreja. Até nas estatísticas se vê como aumentaram os candidatos ao baptismo.
Depois dessa auréola – e espero não ser injusto, quero salvaguardar os bons trabalhadores – no seu conjunto a Igreja hoje está olhando quase só para si mesma, entretida nas próprias estruturas. Há algumas cartas pastorais sobre problemas sociais e políticos, mas não há a meu ver uma acção decidida e coordenada para enfrentar a nova situação. Os pobres aumentam, a insegurança não diminui. As eleições foram sempre questionadas e algumas vezes com muita razão. Moçambique, para ir numa linha política justa social, tem muito caminho pela frente. Nós, Igreja, não estamos fazendo evangelização, estamos numa de sacramentalização. As Igrejas enchem e desenchem. Elas enchem com centenas de candidatos, mas após o baptismo muitos deles não voltam mais. Chegam ao baptismo, chegam onde queriam e depois desaparecem.
Então o que querem é só o baptismo?
Talvez a culpa seja nossa. Talvez tenhamos passado a ideia de que o que interessa é chegar ao baptismo. Uma vez baptizados desaparecem; muitos vão para as seitas. Este é um problema muito grande na Igreja em Moçambique. Temos que mudar o acento da sacramentalização para a verdadeira evangelização. Eu sempre me lembro de S. Paulo que escreve: “Eu não vim para baptizar, eu vim para evangelizar.” Está na hora de termos a coragem de não dar sacramentos quando não temos a certeza de que a pessoa está mesmo com a ideia e quer ser mesmo cristão. Eu tenho-me servido dos Actos dos Apóstolos para esclarecer os nossos cristãos. Pedro, no dia de Pentecostes, anuncia o Messias, Jesus, e os ouvintes fazem uma pergunta: “O devemos fazer?” Pedro responde: “Convertei-vos e recebei o baptismo”. Nesse dia são baptizados uns três mil, diz o texto. Mas nós paramos aí a leitura. Porém, se a gente lê o relato que vem quase a seguir vemos como os que foram baptizados eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à oração, à partilha fraterna, tinham aquela alegria de viver em comunhão. É isso que está a faltar. Os nossos que são baptizados ainda não passaram a formar uma comunidade activa e viva.
Em Moçambique, sobretudo no Norte, há muitos muçulmanos. Como é o vosso relacionamento com eles? Em Moçambique não é possível fazer uma grande evangelização sem levar a sério os muçulmanos. Temos de contar com eles. Como eles chegaram lá antes do cristianismo têm raízes na própria cultura africana. É fácil conviver com eles, sobretudo com os antigos que não têm a tendência fundamentalista. Há, portanto, uma distinção a fazer entre aqueles que são tradicionais e acostumados a conviver e aqueles que chegaram mais recentemente. Agora claro, é difícil haver uma mistura. Por exemplo se uma mulher casa com um muçulmano fica também obrigada a participar no islamismo. Aí a tolerância é pequena no sentido de deixar cada um na sua e respeitar o outro.
Qual é o papel dos missionários que vão de fora? Ainda há espaço para eles? Como é que eles são vistos pela Igreja moçambicana e pelo povo?
Se nós olharmos para as estatísticas, vemos que a maioria ainda não é cristão nem é islâmico, segue a religião tradicional. Então os missionários são necessários. Olhando para o povo de Deus, esse povo nas aldeias e até nas cidades, creio que eles não duvidam que nós somos necessários para o trabalho da primeira evangelização.
A nível ideológico já é outra conversa. Aí temos tido experiências ambivalentes que não satisfazem porque há uma tendência bastante nacionalista na Igreja. Há tendência nacionalista, que é compreensível e justa até certo ponto. Por exemplo, em Angola é diferente. Eu trabalhei 14 anos em Angola e umas das coisas mais agradáveis foi constatar que o povo de Deus sempre soube distinguir o que era um missionário e um colono. Nunca me chamaram de colono, sempre me receberam como missionário. Mas aqui os missionários foram vistos como colonos.
Estamos a celebrar o Ano Verbita da Leitura da Bíblia. O Pe. Manuel tem uma grande experiência no apostolado bíblico. O que gostaria que nascesse deste desta iniciativa da SVD?
Neste Ano Verbita da Leitura da Bíblia temos procurado levar a Palavra de Deus às nossas comunidades cristãs de Moçambique. Penso que esta iniciativa da SVD foi uma coisa boa, que tem que dar um fruto bom. Eu gostaria que o próximo Capítulo Geral fizesse uma avaliação deste Ano da Leitura Bíblica e colocasse a Bíblia em evidência para a nossa missão. No Concílio Vaticano II foi dito que a Bíblia tem que chegar à mão de todo o cristão. Então, como verbitas, vamos ver se executamos aquilo que há 40 anos a Igreja pediu e que o Sínodo da Igreja em África também pediu. Eu gostaria imenso que nós, depois deste ano, fôssemos para um trabalho com precisão. Podemos colaborar com os bispos do país e com outros missionários. Nós devíamos criar uma chama destacando a importância da Palavra de Deus.
A SVD tem no mundo várias editoriais e Institutos que trabalham directamente no campo do Apostolado Bíblico. Pode falar-nos de alguns desses meios?
Pessoalmente fiquei muito contente quando pude visitar o Centro Bíblico de São Paulo, no Brasil, e o Centro Bíblico de Quito, no Equador. Por exemplo, o Centro Bíblico do Verbo Divino, em Quito, atinge todo o país com as suas actividades. É um Centro que foi crescendo e caminhando, passando por várias etapas. Houve uma primeira etapa em que se acentuou mais a formação popular, com cursos para povo sobre a Palavra de Deus. A seguir veio uma etapa mais académica em que os responsáveis deram mais destaque às aulas e abertura de livrarias. Foi uma etapa que ainda hoje subsiste. Porém, agora voltaram a direccionar as acções para o povo simples.
De certa forma isso pode ser um modelo a inspirar o apostolado bíblico verbita em Moçambique e em Portugal ?
Sim, para não ficarmos só nós próprios a ler a Bíblia, mas para atingir as dioceses do país. Temos de ter consciência de que ao falar da Bíblia não estamos a vender uma mercadoria ou a promover uma devoção em particular. Não é nada disso; é uma questão de vida ou morte, é uma questão de salvação ou perdição. Bíblia é que nos orienta, porque é um caminho. Se aprendes a escutar Deus e levas isso a sério, não vais ter medo, vais bem. Mas se tu não levas a sério essa voz estás perdido, estás na confusão. Ora bem, isto não é uma questão de crenças, é uma questão de fé. A Bíblia contém a Palavra de Deus. Então nós devíamos pegar nesse tesouro e dizer, como diz o Concílio Vaticano II, que a Bíblia é a norma fundamental para toda a vida cristã, é a alma de toda a pastoral e de toda a teologia. Não é mais uma pastoral que vamos fazendo, é a alma de todas as pastorais.
Ou seja, a pastoral bíblica não deveria ser uma moda passageira...
Não é moda, nem é devoção; é algo de fundamental que não pode faltar. É algo que está no centro da vida da Igreja como disse São Jerónimo e o Concílio repetiu. Num Congresso Bíblico, um representante da Igreja Ortodoxa disse mais ou menos isto: “Nós, os ortodoxos, nem movimento bíblico temos apesar do destaque que a Bíblia tem na liturgia. Nós temos que recuperar a Bíblia. Os católicos demoraram 500 anos a reconhecer que a Bíblia é indispensável, que só a hóstia (Eucaristia) não basta. A Bíblia também é indispensável. Agora – dizia ele – esperamos que os nossos irmãos protestantes também não demorem outros 500 anos a reconhecer que só a Bíblia também não basta. Ora eu penso que há aqui uma palavra muita clara a dizer: A Bíblia é indispensável.
Entrevista: Contacto SVD