1. Interrogam-se não poucas pessoas sobre o “Código da Vinci”, e outra literatura igual, na fronteira entre a ficção e o esotérico, ou, no domínio de fenómenos supra-normais e de conteúdos da mais exuberante emoção.
É dado incontroverso que as linguagens simbólicas ou de teor metafórico guiam o cogitar humano e franqueiam o acesso a territórios que o conceito não desbrava nem fixa. Por processos poéticos, no âmbito da releitura de acontecimentos e da produção de possibilidades, a investigação chega muito mais longe, de tal modo que o discorrer cede o passo a uma captação mais eficaz, dando a impressão que os umbrais do mistério se situam mais próximos.
Os peritos destes processos, no entanto, fornecem o código, discutem-no e põem à disposição dos interessados a chave da compreensão.
São, pois, processos culturais, abertos a zonas do saber, por vezes interditas, e esforçados por garantir um olhar mais acessível sobre o infinitamente pequeno ou grande...
As versões ficcionais interpretam de outro modo ou seja, a uma luz outra, textos e elementos concretos, imaginando perspectivas, acentuando olhares, construindo originais decifrações. Partem do real, omisso e quase mudo, porfiando em formular hipóteses e entoar uma voz que faça falar um texto.
Partindo, por exemplo, do sonho de José (Mateus, 1,18-25), o autor elabora numa viagem de tormentos e do sossego a propósito do nascimento de um Deus. De um facto referenciado no Evangelho, poderá haver quem invente uma narrativa, cujos conteúdos não nos são contados na fonte de que se parte. O silêncio a respeito de muitas coisas aguça o acto imaginativo. Mas o que não se contesta é a existência de um facto ou de um acontecimento, os quais são respeitados como ponto de partida para uma inspiração subsequente.
2. Mas o Código da Vinci, como outras obras da mesma corrente, fixa-se em experiências, em pessoas, em acontecimentos, distorcendo e anulando o campo histórico. Evocar a experiência da “Última Ceia” e negar a presença do evangelista S. João (que o texto evangélico situa ao lado de Jesus Cristo, que preside à mesa) para afirmar que se trata de Maria Madalena, torna possível que alguém diante da fotografia de uma paisagem ou de uma pessoa identificadas (e comprovadas por uma obra de apoio) as repudie como tais, concluindo, da forma mais fantasmagórica, que são uma realidade totalmente diferente...
Referir que a pessoa de Maria Madalena equivale a uma enamorada de Cristo, o Qual lhe corresponde em igual enfeitiçamento, não recolhe o mínimo fundamento na narrativa sagrada, por muito que tenha em conta o comportamento público de Madalena, bem presente na nomenclatura que aí bebeu origem, ao designar de “madalenas” quem se perdeu em idênticos caminhos da vida.
Pode-se trazer à colação o acontecimento artístico da bela igreja de S. Sulpício, em Paris. Só que decifrar uma das suas colunas como fonte de mitos e de tragédias sacras é tão fundamentado e real como julgar, nos nossos dias, que a Torre dos Clérigos é a tribuna de duendes e de figuras olímpicas, a povoarem a noite... A imaginação pode bater asas... Quem acreditar no voo, julga real o que não passa de um desvario.
3. A grande interrogação nesta floresta de gostos é esta: mas porquê? O que é que faz correr uma literatura ancorada em fantasias, ao contrário das exigências da mais elementar solidez?
E tudo vai atrás, no meio de iluminações e emocionalismos, à busca de algo que lhe escapa no decurso dos dias. E hoje já ninguém fala em alienações! Ao longo desta semana, Jesus Cristo é memória e razão. Um rosto humano e histórico oprimido e reabilitado indica “vias sacras “ idênticas em pessoas ao nosso lado. A mistificação deixa amargos de boca. O ressuscitado apela a combates, plenos de realismo.
Lisboa, 18 de Março de 2005
D. Januário Torgal Mendes Ferreira
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança