Nacional

A religiosidade popular e a Semana Santa

Octávio Carmo
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Algumas expressões da devoção popular podem parecer distantes dos cânones da ortodoxia católica, mas os ritos da Semana Santa inserem-se sem dificuldade no âmbito da liturgia oficial

A religiosidade popular é um facto que acompanha a vida da Igreja e que a acompanhou durante todos os séculos. Trata-se de expressões, gestos, atitudes, que expressam uma relação pessoal com Deus: beija-se a cruz, percorre-se a Via Sacra, participa-se numa peregrinação, ajoelha-se diante da cruz. No caso português é esta religiosidade que, sob uma aparente unidade enraizada no catolicismo, manifesta mais fielmente a pluralidade da sociedade portuguesa na vivência do sagrado. A vivência da Semana Santa e do Tríduo Pascal, que foi ganhando forma ao longo dos séculos, conta hoje em dia com dois ciclos de formulações diferentes: um rigorosamente litúrgico, universal, o outro marcado por manifestações de piedade particulares, de onde sobressaem as procissões. Em Portugal, é conhecido o grande envolvimento da população nestas celebrações da Semana Santa, algumas das quais conservam marcas evidentes de proveniência popular. O Bispo de Aveiro, D. António Marcelino, adverte hoje, contudo, que “as tradições religiosas populares que, também, devem ser pascais, abafam, por vezes, a riqueza da Páscoa e não deixam que ela seja vivida na sua genuína riquezaâ€. “O facto lamentável de a visita pascal, uma tradição válida quando mantém sentido cristão, se sobrepor, nalguns casos, à celebração da Eucaristia do Domingo da Ressurreição, atirada para horas mais que matutinas, mostra como o acessório pode matar o essencial. As tradições, quando se desvirtuam, matam a rica Tradição de fé que as originou e lhes deu sentidoâ€, exemplifica no editorial do Correio do Vouga. A nível da Santa Sé, o “Directório sobre a piedade popular e a Liturgiaâ€, publicado pela Congregação para o Culto Divino e a disciplina dos Sacramentos em 2001, apresenta a situação do Domingo de Ramos para falar dos perigos de “contaminação†supersticiosa das celebrações. “Será oportuno insistir em que aquilo que é verdadeiramente importante é a participação na procissão e não obter apenas a palma ou o raminho de oliveira, e que estes não se devem conservar à maneira de amuletosâ€, pode ler-se. D. António Marcelino sublinha que “sem a compreensão e a vivência possível da Festa da Páscoa do Senhor, com a sua riqueza inesgotável, tanto por parte de quem promove as festas como de quem nelas participa, nenhuma festa religiosa popular conserva o sentido cristãoâ€. Se algumas expressões da devoção popular podem parecer distantes dos cânones da ortodoxia católica, a maioria dos ritos da Semana Santa inserem-se sem dificuldade no âmbito da liturgia oficial. A religiosidade popular, cósmica e natural, pode servir, no caso da Igreja Católica, para compreender melhor a utilização de sinais e gestos simbólicos que expressam uma componente profundamente humana e religiosa. Por isso, tem sido sempre chamada a atenção para uma verdadeira integração entre a liturgia e a piedade popular, como aconteceu na liturgia da Igreja dos primeiros séculos, com algumas celebrações, e na liturgia romana da Idade Média, com as procissões, ladainhas e outros ritos, assumidos em forma de culto.


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