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Beleza, verdadeiro nome de Deus, tema recorrente na literatura

Voz Portucalense
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Há desassossegos do viver humano, diante dos quais é impossível ficar indiferente. Não admira, por isso, que a temática religiosa no campo da literatura, frequentes vezes, seja articulada com os contornos da inquietação existencial. Aqueles que se confessam crentes não são necessariamente os melhores observadores desses lances da alma humana. Pelo contrário, às vezes a pertença a uma religião e ao seu corpo doutrinário como que dificulta um juízo sem preconceitos acerca de problemas que levaram tantos escritores a fazer perguntas incómodas à vida. Fácil se torna verificar uma grande disparidade de registos literários no respeitante à temática religiosa, facto que reflecte, afinal, a diversidade de estados de alma face ao mesmo mistério da vida. Em certos autores, essa reflexão testemunha uma fé claramente assumida, como acontece na obra de Agostinho da Cruz. Nos últimos dois séculos, porém (como ocorre na poesia de Antero e em tantos outros poetas, sobretudo desde o Simbolismo e do Modernismo até aos nossos dias), a expressão literária do religioso tem traduzido muito mais «a trituração do pensamento sobre a espontânea necessidade de crer», para utilizar as palavras de Régio. De facto, as abordagens do problema religioso num grande número dos nossos escritores modernos sobrelevam mais uma atitude interior de inquietação e de desassossego do que cetinosas branduras para tentar a pacificação da alma. Tal não significa, porém, que a questão religiosa tenha sido relegada para segundo plano nas obras literárias do nosso tempo. Muito pelo contrário, está subjacente em muitos autores modernos uma reflexão acerca do problema de Deus baseada em pressupostos por vezes mais sólidos do que em obras tradicionalmente arrumadas dentro da categoria de literatura religiosa. RUY BELO, RUY CINATTI E VITORINO NEMÉSIO É o que acontece em poetas nossos contemporâneos, mesmo quando em suas obras o nome de Deus não transparece directamente na superfície do texto. Não admira que assim seja, pois as expressões poéticas, dada a sua natureza analógica, são as mais adequadas para se abeirarem daquelas realidades diante das quais, para utilizar uma expressão de Ruy Belo, «o máximo de voz é o silêncio» . E se referimos este poeta, é porque na sua obra, estando embora presente um profundo sentimento de vazio, há uma frequente afirmação do desejo de um «deus deslumbrante» que «não anoitecesse na noite náutica antecessora da noite que ao fim nos espera» . Poderíamos citar igualmente os exemplos de Ruy Cinatti e de Vitorino Nemésio em cuja obra se exprimem um profundo misticismo e a consciência de uma absoluta pobreza diante de Deus, apesar de esta vibração mística ser veiculada por uma escrita onde são claros os sinais de ruptura com as imagens de Deus recebidas na catequese da sua infância. Há outros casos em que a temática religiosa não passou por uma reconfiguração das imagens de Deus, já que ela fluiu directamente da contemplação da beleza, esse lugar onde a poesia sempre se exprime. Foi o que aconteceu com Sebastião da Gama, poeta profundamente religioso. O que contribuiu mais decisivamente para ele se abrir ao problema de Deus não foi nenhuma iniciação catequética recebida na infância, nem o zelo apostólico de alguma carismática figura da Igreja, nem sequer a influência das suas leituras. A questão religiosa, além de lhe ter sido acicatada pelo confronto pessoal com o mistério do sofrimento, foi-lhe segredada pela solidão da Arrábida, com a grandiosidade da sua natureza. A sensibilidade poética levou-o a ler a interioridade das coisas naquela harmonia pacificadora e ajudou-o a acolher a «religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido» . É essa via de acesso a Deus que quero pôr aqui em relevo. Não será a contemplação da beleza que poderá levar o homem a não se hipnotizar pela tecnologia moderna, prostrando-se diante dela em adoração idolátrica? A verdadeira santidade não será acima de tudo a aventura daqueles que se deixam envolver pelo fascínio da beleza de Deus? Olivier Clément, um teólogo ortodoxo em cujos escritos transparece uma grande vibração estética e uma elevada temperatura poética, confessa que a santidade é a luz da beleza de Deus reflectida no homem. A BELEZA DOS TEXTOS BÃBLICOS A Bíblia está cheia de trechos literários em que se faz o elogio da beleza como reflexo do esplendor divino. Esse grande código sagrado utiliza todos os modos harmónicos da linguagem para dizer que a beleza de Deus brilha rosto e vida do homem. Podemos até dizer que a grande proposta da Bíblia é o convite ao deslumbramento. Nos relatos evangélicos vemos que a fé em Jesus começa pela admiração do povo frente à sua pessoa, ao seu estilo de viver, à sua maneira de falar e de se arriscar, ao seu modo de se apresentar como o encontro entre o Pai e os homens. As bem-aventuranças são mais belas do que um diamante, ao revelar o mistério do ser humano iluminado pelo olhar de Deus. A cruz é um hino à beleza porque, ao mesmo tempo que mostra o trágico da vida, faz a deslumbrante revelação da força de amor que existe em Deus. A beleza salvará o mundo. Foi esse o grito profético de F. Dostoïevski, um dos maiores romancistas russos do fim do século XIX. Num outro registo, este mesmo grito de esperança foi proclamado recentemente na Póvoa de Varzim, durante um dos debates do «Correntes de Escrita», sintomaticamente polarizado nesta afirmação: A Literatura é o sentido último das coisas». Nesta debate foi reafirmado pela voz da romancista Teolinda Gersão o carácter testemunhal da literatura: «escrevemos para ver mais fundo do que a superfície e arriscar uma perspectiva ao mesmo tempo reveladora e crítica do mundo à nossa volta». Como muito lucidamente escreveu Miguel Torga, «o Poeta semeia / poemas de confiança. O poeta é uma criança que devaneia / Mas todo o semeador/ semeia contra o presente. / Semeia como um vidente / a seara do futuro, / sem saber se o chão é duro / e lhe recebe a semente» . É esta ousadia própria dos poetas que nos permite, como crentes, sentir mais a graça do que a desgraça. Manuel António Ribeiro


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