A 19 de Abril de 2005, concluiu-se o conclave convocado para escolher o novo Papa. Após dia e meio de votações e quatro escrutínios foi eleito o Cardeal Ratzinger. Dos papas mais recentes, só a eleição de Pio XII demorou menos: dia e meio e três escrutínios.
O início do novo pontificado foi marcado por algumas circunstâncias que surpreenderam mas que acabaram por ceder à verificação da sua plausibilidade. Logo a eleição, segundo o testemunho do próprio eleito, foi contra as suas previsões, sobretudo devido à sua avançada idade. Mas a comparação deste caso com a eleição de João XXIII mostra que tal circunstância não é inédita, e a experiência histórica desse pontificado acabou por se evidenciar muito positiva. Basta pensarmos na convocação do concílio ecuménico Vaticano II. O próprio nome Bento, escolhido por Ratzinger, não tinha sido geralmente previsto. Mas várias declarações suas anteriores acerca do significado da obra de S. Bento mostravam já o sentido dessa escolha que, assim, podia ser vista como indicativa do seu projecto como Papa. É certo que também evocou a figura do seu antecessor Bento XV, sobretudo o seu empenhamento pela paz ao eclodir a guerra de 1914, mas julgo que prevaleceu na sua escolha a figura do fundador dos beneditinos. A segunda grande entrevista dada por Ratzinger ao jornalista Peter Seewald (depois de Sal da Terra, de 1996) e que foi publicada, em alemão, com o título Deus e o mundo. Fé e vida no nosso tempo, decorreu em 2000 no mosteiro beneditino de Monte Cassino, a pedido do entrevistado.
Bento de Núrcia havia sido, com o grupo de monges que reunira à sua volta, o impulsionador da superação da crise profunda em que se encontrava a civilização do Império Romano, sobretudo após a queda de Roma à mão dos bárbaros. Já foi notado que no ano 529, quando fechava em Atenas a Academia de Platão, se construía no Monte Cassino o grande mosteiro a que Ratzinger chamou a “Academia do Cristianismo”. Com o ideal beneditino, tornado conhecido pelo lema ora et labora, os inúmeros mosteiros que cobriram o espaço a que hoje chamamos Europa garantiram não só uma nova pujança civilizacional e cultural, como também nela integraram, preservando-as, as principais obras da cultura anterior greco-latina. Foi deste modo que o destino desta cultura não foi o de tantas outras que perderam o seu lugar próprio na História, deixando, quando muito, traços que delas hoje nos recordam.
O novo Papa espera que seja possível, através de um esforço discreto mas profundo e persistente, superar de modo semelhante a crise contemporânea, sob a inspiração e com a dinâmica da fé cristã. Logo na homilia da missa pela eleição do novo papa, o ainda cardeal Ratzinger apresentou, como se sabe, os traços dessa crise com a forte expressão “ditadura do relativismo”, explicando: “Estamos a avançar para uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como certo e que tem como objectivo central o próprio ego e os próprios desejos.” E especificou: “Quantos ventos de doutrina conhecemos ao longo dos últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modas de pensamento… A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi muito agitada por essas ondas – atirada de um lado para o outro: do marxismo ao liberalismo, até ao libertinismo; do colectivismo ao individualismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo.”
Se nos reportarmos a escritos anteriores, podemos ver aqui o aflorar de uma convicção que Ratzinger expôs contrapondo a teoria da História de Oswald Spengler à de Arnold Toynbee. Enquanto que o primeiro defende uma concepção biologista afirmando que qualquer civilização, depois de conhecer o seu começo e apogeu, acaba por declinar e desaparecer, a concepção de Toynbee é antes a de que é possível uma intervenção voluntarista nos ciclos da História, suficiente para impedir o descalabro final de uma civilização. Como diz Ratzinger: “Toynbee evidencia a diferença entre o progresso material e técnico, por um lado, e o verdadeiro progresso, por outro, definindo este como espiritualização“.
O Papa acredita que isto é de novo possível como o foi no tempo de S. Bento, devido às virtualidades da fé cristã, nomeadamente a de salvaguardar uma autêntica racionalidade. Com efeito, o cristianismo optou, desde o seu início, por se aliar à filosofia, sobretudo a de Platão e Aristóteles, pois encontrava nela a afirmação fundamentada da realidade e verdade de Deus. Esse mesmo Deus que a razão humana pela filosofia procura, e à sua maneira conhece, veio até nós definitivamente em Jesus Cristo – a própria Palavra e Sabedoria de Deus – para se nos revelar numa relação pessoal que a filosofia não conhece. Por isso tem defendido Ratzinger que a fé cristã sempre supôs e completou uma autêntica Aufklärung, uma autêntica clarificação racional como procura da verdade. E, em tempos de crise em que a razão chegou a duvidar de si mesma pelo cepticismo, como no declínio da Idade Antiga, foi a fé que reconduziu o pensamento a uma renovada confiança no racional. Também o tempo actual é de crise, não aceitando que “no princípio é o Logos”, como afirma S. João, e defendendo que tudo provém do acaso. Não é a teoria da evolução como hipótese científica para fundamentar uma biologia evolutiva que Ratzinger critica, mas a sua elevação a uma espécie de “filosofia primeira” universal que faz derivar o racional do irracional – com consequências no tipo de soluções propostas para muitos problemas da vida. Ao desligar-se, na modernidade, do pensamento religioso, em geral, e da fé cristã, em particular, a Aufklärung, o ideal de esclarecimento racional, não evoluiu mas, como diz Ratzinger, involuiu, degradou-se. A consequência é o relativismo, nihilismo e agnosticismo modernos, uma mentalidade comparável ao cepticismo da Antiguidade decadente.
Este primeiro ano de pontificado do Papa parece-me ter sido o da descoberta do verdadeiro Ratzinger que alguma opinião pública tinha encoberto com clichés ligados à sua responsabilidade como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Ao facto de esta função ter os seus próprios limites, acresceu que a sua acção foi, frequentemente e por diversas razões, mal apresentada e interpretada. Para alguns, tudo o que vinha do Vaticano, com que não concordavam, era por culpa do cardeal Ratzinger. A fim de corrigirmos essas distorções e descobrirmos o verdadeiro sentido dos sinais que o Papa nos foi deixando ao longo deste ano, é necessário recorrermos ao pensamento que, algumas vezes pouco tempo antes da sua eleição, ele próprio exprimiu. Foi o que acabei de fazer, a propósito do nome que escolheu, e que podemos e devemos alargar a outros sinais que se tornaram visíveis neste primeiro ano de pontificado.
Um desses outros sinais foi a declaração feita pelo recém-eleito Papa Bento XVI, numa missa com os cardeais na capela Sistina, de ter a “ambição” e o “dever” de promover “a causa fundamental do ecumenismo”, acrescentando: “não bastam as manifestações de bons sentimentos, são precisos gestos concretos que entrem nas almas e movam os corações”. Reportemo-nos à sua lição inaugural como professor de Teologia Fundamental na Universidade de Bona, em 1959, cujo tema foi a distinção e o íntimo relacionamento entre o conhecimento filosófico de Deus e o seu conhecimento revelado. Joseph Ratzinger comparou as posições de dois teólogos, um católico e outro protestante – ou evangélico, como se costuma dizer na Alemanha, S. Tomás de Aquino e Emil Brunner. Após as ter discutido nos seus diversos aspectos, apelou no final para que teólogos católicos e evangélicos conjugassem sensibilidades e esforços no sentido de procurarem a verdade. Já então Ratzinger realizava o lema que havia de escolher como arcebispo de Munique e que conservou como Papa: cooperatores veritatis, colaboradores da verdade, uma citação da 3ª carta de S. João (v. 8). Tal colaboração sempre a entendeu Ratzinger num largo âmbito ecuménico. Dizia-me, há tempos, um teólogo protestante, próximo de Ratzinger, que com ele se pode discutir facilmente pois conhece a fundo a teologia de Lutero e de outros autores da Reforma. Mas também do âmbito ortodoxo oriental têm chegado sinais de disponibilidade para o diálogo, nomeadamente do círculo próximo do Patriarca de Moscovo, cuja atitude anterior era muito renitente. O que não admira, sabendo-se da importância que têm para a teologia de Ratzinger os Padres da Igreja gregos os quais, para os Orientais, são o próprio fundamento da Ortodoxia. Enquanto frequentei a Faculdade de Teologia Católica de Regensburg, aí encontrei estudantes dessa confissão cristã, por vezes já doutorados, que vinham ouvir os cursos de Ratzinger. Várias amizades entre os Ortodoxos lhe ficaram desde então.
São sinais de que o actual Papa poderá vir a desenvolver, no futuro, um importante papel de conciliação entre os católicos e os irmãos separados, quer ortodoxos quer protestantes. Igualmente no domínio mais vasto do diálogo inter-religioso há fundadas esperanças. É certo que tem alertado, por vezes, para o perigo do relativismo e sincretismo também neste campo. O diálogo não pode ser feito a qualquer preço. Mas já nos tempos em que foi professor de Teologia Fundamental, particularmente vocacionada para este diálogo, fez uma profunda investigação sobre as religiões não cristãs, de que são testemunho diversos escritos publicados posteriormente. No que respeita ao Judaísmo, a sua visita à sinagoga de Colónia em 19 de Agosto de 2005, durante a Jornada Mundial da Juventude, e iniciativas semelhantes que entretanto tomou não constituem algo de insólito no seu percurso. Sob este aspecto pode ter algum interesse referir a sua amizade e diálogo, ainda que por vezes crítico, com o biblista alemão Franz Mussner que se tornou conhecido pela sua extensa investigação e numerosas publicações sobre o valor teológico do Israel actual.
Mas a vocação conciliadora de Bento XVI, embora aliada sempre a uma rigorosa procura da verdade, tem tido outras manifestações. Porventura a de maior impacto mediático foi ter recebido Hans Küng, com quem manteve uma longa conversa de várias horas e da qual o Papa fez questão de redigir, ele próprio, o comunicado à imprensa. Mas é preciso rectificar, contra aquilo que por vezes se escreveu, não ter sido por iniciativa de Ratzinger que foi negado ao professor de Tubinga o nihil obstat para as suas aulas. Nessa altura Ratzinger não era ainda Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e também não era o bispo da Diocese em que Hans Küng ensinava na Alemanha, como já se escreveu. Outra manifestação do espírito conciliador de Bento XVI, mais recente e em sentido inverso, consistiu na tentativa de ultrapassar o diferendo que opõe os seguidores de Mons. Lefèbvre à autoridade de Roma por contestarem a legitimidade da reforma iniciada pelo concílio Vaticano II. Alguém afirmou que é necessário não identificar a pessoa com os seus actos, pois que estes podem ser revistos e ultrapassados. A pessoa que erra é aquela que mais precisa de não ser votada ao ostracismo, mas acompanhada e apoiada. Deste personalismo evangélico (pensemos na parábola do filho pródigo ou na alegoria da ovelha perdida) foi Ratzinger, já nos seus tempos de professor, um reconhecido exemplo.
Outros sinais da vontade e capacidade conciliadora de Bento XVI têm vindo a lume, como no que se refere às autoridades chinesas. Ultimamente repetiram-se os seus apelos ao diálogo como forma de superar conflitos.
Costuma-se distinguir dois sentidos, aliás complementares, do termo católico que, como se sabe, quer dizer universal. Um sentido “em extensão”, enquanto significa a vocação da fé cristã para ser anunciada a todos os homens, sem excepção; e um sentido “em compreensão” enquanto é próprio da fé cristã abranger todo o humano, todas as dimensões e riquezas que integram a civilização e a cultura. Julgo que se poderá dizer que João Paulo II se evidenciou sobretudo no primeiro sentido da catolicidade, devido ao seu carisma para acolher a todos e a todos atrair pela força da sua personalidade. Manifestamente Ratzinger não tem o mesmo carisma para as multidões. Mas estas não têm faltado para o ouvir. Isto aconteceu na Jornada Mundial da Juventude, em Colónia, embora tenha tido importância o facto de ocorrer na própria pátria do Papa. Mas mesmo em Roma, a participação nas audiências gerais tem atingido tais proporções que houve necessidade, frequentemente, de as transferir para a Praça de S. Pedro, quando isso era possível. O que agora atrai nessa presença, marcada por alguma timidez mas também por uma grande simplicidade e abertura, é a justeza e profundidade das suas palavras que, simultaneamente, são de uma clareza cristalina. A vocação de Bento XVI parece-me mais inscrever-se na catolicidade “por compreensão”, enquanto recorre a toda a cultura para, conjugando-a com a luz da fé, procurar a verdade do homem.
Tendo ainda, em grande parte, o carácter de sinal, mas constituindo já uma actuação concreta deste pontificado, deve mencionar-se a sua primeira encíclica, Deus é Amor. Também o tema desta encíclica foi uma surpresa. E, no entanto, para quem conheça o pensamento deste grande teólogo, o tema do Amor e da Caridade é o que lhe é de mais central e decisivo. De uma maneira muito pessoal, Ratzinger aparece aqui a recolher o melhor legado do concílio Vaticano II, em que, aliás, colaborou intensamente na qualidade de perito oficial. Ao mesmo tempo, porém, lança pistas para se prosseguir a sua aplicação e concretização, através de medidas que tudo indica vai tomar nos próximos anos.
Alguns aspectos poderão interessar sobretudo a opinião pública. Um deles é a afirmação clara de que a política, toda a política, se não pode nunca alhear dos valores éticos, e isto a um título próprio e específico pois que a razão de ser última da política é, precisamente, a de realizar a justiça. Recordo a citação, muito forte, de St. Agostinho quando este Padre da Igreja, formado na tradição jurídica romana, que aliás ensinara aos seus alunos, afirmava que um governo que não actue segundo a justiça em nada se distingue de um bando de ladrões (n.28c, p.49s). Ratzinger mostra-se, além disso, muito crítico perante o recurso a ideologias quando se pretende com elas resolver, perfeita e definitivamente, os problemas humanos, como se o homem pudesse usurpar a Deus o seu poder de governar o mundo (n.36, p.68). A salvação nunca virá duma ideologia construída pelo homem mas da ética a que o homem deve obedecer; uma ética cuja exigência fundamental é a do amor de caridade: “A actividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo, de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é actualização, aqui e agora, daquele amor de que o ser humano sempre tem necessidade.” (n.31b, p.61) Digno de nota é, ainda, o facto de a Encíclica recordar a vocação secular dos leigos (n.29, p.54), e de apelar para uma colaboração ecuménica de todas as confissões cristãs (n.30b, p.58) na “caridade social” (n.29, p.55). Para a “caridade social” são mesmo convocados todos os homens, atendendo sobretudo às exigências da actual globalização (n.27, p.49). Se for certo que está em preparação uma nova encíclica social, é bem possível que encontremos já aqui algumas das suas linhas de fundo.
Outros aspectos têm mais interesse para a vida interna da Igreja. Entre eles pode referir-se o modo como fala do ministério dos diáconos e dos bispos. Até ao Vaticano II prevalecia a ideia de que o constitutivo de todo o ministério decorrente de uma ordenação sacramental se definia pelo poder sacerdotal de celebrar a Eucaristia, ou em relação a ele. O concílio alargou esta concepção às três funções do ministério ordenado: além da sacerdotal ligada à Eucaristia e a toda a celebração sacramental e litúrgica, também a profética como anúncio da Palavra de Deus, e a diaconal como serviço de amor aos mais carenciados. A doutrina exposta pela Encíclica implica que o específico do ministério ordenado dos diáconos se situa neste serviço aos mais carenciados, lembrando ao mesmo tempo que é como colaboradores do bispo que eles exercem esse ministério. Consequentemente, insiste o Papa, a função caritativa integra, primariamente, o próprio ministério episcopal. O facto de notar que o Código de Direito Canónico o não menciona expressamente, leva a crer que a modificação do Código sob este aspecto, já anunciada no respeitante ao ministério dos diáconos, se estenderá, provavelmente, ao ministério dos bispos. Mencionei este ponto particular porque me parece indicativo de que esta encíclica é mais programática do que parecerá à primeira vista.
Podemos concluir que, a meu ver, o que principalmente caracterizou este primeiro ano do pontificado de Bento XVI, foi a descoberta pelo público em geral da verdadeira personalidade de Joseph Ratzinger. As suas primeiras realizações e os sinais que deu não são inovações motivadas pela circunstância de se ter tornado Papa, mas vêm na continuidade de toda a sua vida e actividade anteriores. É à luz dessa sua vida e actuação que se pode perceber o verdadeiro significado e alcance deste primeiro ano de pontificado, encontrando nele uma fundada esperança. O ministério petrino do novo Papa está no seu início, mas é lícito supor que se desenvolverá na fidelidade mais rigorosa ao concílio Vaticano II. Bento XVI conhece-o em primeira-mão, e, além disso, já mostrou sabê-lo aplicar de forma criativa à situação actual. Não foram apenas as suas anteriores responsabilidades na cúria romana que lhe facultaram um conhecimento exaustivo dos problemas da Igreja e da humanidade; é também a sua competência teológica, filosófica e humanística que lhe permite fazer deles um diagnóstico lúcido e, consequentemente, conceber um projecto seguro de acção.
28 Abril 2006, Colóquio com Jornalistas - Mosteiro de S. Vicente de Fora