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Como nos chegaram os relatos do Natal?

Opus Dei
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A aproximação do Natal é sempre uma ocasião para voltar a olhar os textos que narram o Nascimento e a Infância de Jesus, os chamados Evangelhos da Infância (Mt 1-2 e Lc 1-2). Essa leitura move a nossa piedade mas também a nossa investigação. Aliás, uma e outra andam unidas e complementam-se. Uma das questões que se colocam é a escassez de dados: porque sabemos tão pouco sobre o Nascimento e a Infância de Jesus? Outra é a dispersão dos dados: porque Mateus e Lucas parecem não coincidir em nada excepto na concepção virginal e no lugar do nascimento? A resposta à primeira pergunta pode residir na humildade de Jesus, no seu ocultamento voluntário. Os Evangelhos foram escritos por discípulos directos ou indirectos do Senhor que só O conheceram depois que Se começou a mostrar publicamente como Mestre, e Jesus tomou como norma de conduta só falar daquilo que necessitavam aqueles que O escutavam e não de Si próprio. Por exemplo, nunca nas suas parábolas, que referem praticamente todas as profissões da época, surge um artesão (tektos). A resposta à segunda é mais complexa. Era natural que os discípulos, tal como nós, tivessem interesse em saber mais. Mas o próprio clima em que se desenvolveu a Igreja não permitia muitos vagares para uma investigação. Mateus e Lucas, no entanto, parecem ter tido acesso a dados que os outros não possuíam, e isso por razões diferentes, daí provavelmente a dispersão da informação que nos transmitiram. Mateus era um publicano, profissão socialmente conotada com o pecado. Mas só no seu Evangelho é que somos informados do facto. Lucas e Marcos, parecem querer salvar o seu bom nome ao designá-lo como Levi (cf. Mc 2,13-17; Lc 5,27-32). Mateus não só descreve o episódio da sua vocação com o nome por que seria conhecido (cf. Mt 9,9-13), como se denomina assim – «Mateus, o publicano» – na lista dos Doze escolhidos para apóstolos (cf. Mt 10,3). Até aqui a humildade do evangelista. Mas Marcos deixa cair que o tal Levi era filho de Alfeu (cf. Mc 2,14). Alfeu é também o nome do pai de outro dos apóstolos: Tiago Menor (cf. Mt 10,3), que, segundo Paulo é «irmão do Senhor» (cf. Ga 1,19), isto é, provavelmente primo de Jesus, uma vez que Alfeu não é o pai de Jesus. Esta proximidade familiar de Mateus pode ter facilitado alguma informação, mesmo que escassa sobretudo sobre José, o esposo de Maria, Mãe de Jesus (cf. Mt 1,16). De facto, em Mateus (cf. Mt 1-2) é sempre José o protagonista: é dele a genealogia, é ele quem hesita sobre o que fazer perante a gravidez de Maria, a ele que um Anjo aparece em vários sonhos dando indicações que cumpre com prontidão e sempre ele quem decide sobre a morada habitual do Filho de Deus na Palestina: Nazaré. A razão do conhecimento de Mateus poderia ser, portanto, o seu parentesco com José. Quanto a Lucas o caso é diferente. Não era discípulo directo do Mestre; provinha do mundo pagão helenista. Ele próprio declara (cf. Lc 1,1-4) que se serviu das testemunhas oculares e daqueles que se ocuparam de conservar a memória dos relatos que circulavam sobre Jesus. A sua tarefa foi a de compilar e de ordenar à maneira grega, o material recebido. Mas como é que ele o recebeu? De quem? Quem eram essas testemunhas e esses «servos da palavra» (cf. Lc 1,2) a que se refere no Prólogo? Lucas acompanha Paulo na sua viagem fatídica a Jerusalém na qual este é preso no próprio Templo e depois arrebatado à população judaica para ficar custodiado em prisão romana, em Cesareia Marítima (cf. Act 21ss). Durante a prisão de Paulo Lucas pode ter contactado com uma comunidade cristã que era a primogênita, a primeira sobre quem tinha descido o Espírito Santo (cf. Act 1-2), e onde se conservavam muitas recordações de vinte e cinco ou trinta anos atrás. Encontrava-se depauperada pela dispersão dos apóstolos pela geografia do Império mas possuía o imenso tesouro de toda a memória. Entre as jóias desse património espiritual deviam constar relatos que se prendiam com as recordações de Maria (cf. Lc 2,19.51). Ela é descrita em Jerusalém na altura do Pentecostes (cf. Act 1,14). De facto, a narração de Lucas está centrado em Jerusalém; a sua perspectiva é jerusolimitana desde o anúncio a Zacarias no Templo (cf. Lc 1,5ss) até ao reencontro do Menino nesse mesmo Templo (cf. Lc 2,40ss). Não é difícil conjecturar que parte dos relatos proviessem de pessoas que viviam na cidade na altura dos acontecimentos (cf. Lc 2,38) ou nas montanhas da Judeia que a circundam (cf. Lc 1,65), e que se viessem a cristalizar posteriormente em escritos que formam essa manta de retalhos que é o Evangelho da Infância de Lucas. O evangelista só teve que «coser» as várias peças com pequenos acrescentos da sua autoria que deram unidade ao conjunto. Em resumo, Lucas teve acesso a uma informação por uma casualidade derivada de acompanhar Paulo: permanecer em Jerusalém. Ao mesmo tempo, ele é consciente do valor de tudo aquilo que podia recolher ali para aqueles que não tinham visto nem convivido com Jesus e eram, como ele, cristãos convertidos do paganismo helénico. Ao constatar a dispersão da informação sobre o Natal e a sua origem apercebemo-nos de que se trata de um enriquecimento uma vez que, vinda de fontes tão díspares ela aumenta a nossa percepção dos acontecimentos natalícios. Deus conduziu as coisas assim também para nosso proveito. Pe. José Miguel Ferreira Martins


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