Homilia da Eucaristia de Bodas de Prata Episcopais
Quando Deus mandou o seu Anjo anunciar a Maria que a destinava para Mãe do Salvador-Jesus Cristo, a Senhora assim manifestou a sua obediência livre e fé exemplar: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra” (Lc. 1,38). Obedecendo e realizando a palavra de Deus, Maria consagrou-se totalmente, como Mãe da Encarnação, ao Filho e à sua Obra, “tornou-se causa da salvação, para si e para todo o género humano”, como dizia Santo Ireneu (Adv. Haer. III, 22,4. cf. L.G. 53).
Servo de Deus é o título que o profeta Isaías atribuiu ao Messias: “Eis o meu servo... sobre Ele derramarei o meu espírito; Ele espalhará a justiça entre as nações” (Is. 42,1). A Carta de S. Paulo aos Filipenses fala da Encarnação do Filho de Deus em termos semelhantes: “Aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo” (Filip. 2,7). Foi por este processo de aniquilamento (kenose) que se iniciou o sacrifício redentor de Cristo. E o mesmo S. Paulo, lembrando aos Coríntios os direitos de um apóstolo e pregador do Evangelho, preferiu a liberdade como condição ideal para o Apostolado: “Tendo-me libertado de tudo, fiz-me servo de todos” (I Cor. 9,19).
Faz hoje vinte e cinco anos que nesta Sé Catedral fui ordenado Bispo, como titular de Elvas e auxiliar do Porto. Adoptei como lema e como sinal de liberdade e disponibilidade o propósito e lema de S. Paulo: “Omnium me servum feci – fiz-me servo, servidor de todos”.
Evocando a figura veneranda e venerada do Bispo sagrante (Senhor D. António Ferreira Gomes) e as figuras dos Bispos consagrantes, Sr. D. Domingos de Pinho Brandão e Sr. D. Manuel da Silva Martins, nesta Sé que se encheu de Bispos, Sacerdotes e uma multidão do laicado diocesano, tenho presente neste momento que, sem rigor de contabilidade, fui Bispo da Diocese de Viana do Castelo durante quinze anos e que estou a completar dez anos de serviço à Diocese do Porto, três como auxiliar e sete como titular.
Devo dizer que considero este jubileu episcopal como uma graça de Deus, como dom de vida e como ministério episcopal, mas sobretudo entendo que esta oportunidade é motivo para balanço, reflexão, exame de consciência. A consciência diz-me que devo dar contas a Deus, e também dar contas ao povo de Deus que me foi confiado.
Logo no dia da ordenação episcopal, não tendo obviamente programa pastoral próprio para a Diocese do Porto tive a ousadia de manifestar a preocupação com a vida e ministério dos sacerdotes, com a sua formação permanente e actualização teológica; o desejo de continuar a dedicar-me ao Seminário, a cujo serviço estivera durante vinte anos; e dirigi palavras de apelo à colaboração dos Religiosos e Religiosas, sem deixar de me afirmar aberto e atento às justas aspirações e exigências do laicado diocesano.
Na tomada de posse como Bispo de Viana do Castelo, em 8 de Dezembro de 1982, preveni: “Não tenho outro programa que não seja a missão da Igreja universal que está e se concretiza em todas as igrejas particulares ou dioceses nossas irmãs, que olham para Roma como sendo “aquela que preside à caridade” (Santo Inácio de Antioquia), considerando no entanto que “a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão essencial da Igreja” (Ev. Nunt. 14) e que “entre os principais encargos dos Bispos ocupa lugar preeminente a pregação do Evangelho” (L.G. 25). Ainda assim, e dadas as peculiares circunstâncias da Diocese, referia a necessidade de a dotar com um Seminário que fosse “centro de formação para o seu Clero e núcleo de irradiação da fé e da cultura religiosa para todo o Povo de Deus”. E concluía deste modo: “À mensagem de Amor de Deus que a nossa Fé aprende na Revelação e que é a razão da nossa Esperança, procuremos responder em coro de disponibilidade geradora de optimismo e de solidariedade redentora, a exemplo de Maria: sejamos servos do Senhor, instrumentos para a realização da Sua vontade”.
Tendo tomado posse desta Diocese do Porto em 29 de Julho de 1997, aqui me apresentei e fui recebido em 21 de Setembro seguinte com a solenidade que me confundiu sobremaneira. Eu mesmo me interroguei deste modo: Que programa proponho? Que prioridades sinto? Que preocupações me acompanham? Experimentava como nunca a razão e o sentido das palavras de S. Martinho de Dume: “Sejam as tuas opiniões juízos formados. Cogitações vagas, e inúteis, e semelhantes a sonhos, não as abraces” (Formula Vitae Honestae). E por isso continuava: “não trago programa pastoral... Tentaremos, a partir de hoje como antes, levar à prática aquilo que o Mestre ensina, o Espírito sugere, o Povo de Deus pede e exige, a sociedade precisa e espera”.
Preparávamos então as Celebrações Jubilares do ano 2000, que foram a afirmação e expressão da vida, missão, actualidade, esperança e futuro da Igreja. Iniciado o terceiro milénio da era cristã, mantemos viva igual Esperança (mesmo que assinalada pelos abalos que a afectam), transportamos connosco o programa anunciado e ainda premente – “a nova evangelização”, programa robustecido pelo alento evangélico que o Papa nos faz sentir – “duc in altum” (tenta ainda de novo, mais forte, mais ao largo, com confiança...).
Neste momento apraz-me, como naquele dia 21 de Setembro, não tentar responder à pergunta que ficou sem resposta, mas afirmar em repetição o espírito que me tem animado. Mantenho como opção fundamental o lema do meu episcopado: “Fiz-me servo (servidor) de todos, para todos, para tudo”. Não está em causa a independência e a liberdade. Mas está em causa a não exclusão: nem de pessoas, nem de ideias, nem de problemas, nem de ideologias, credos ou partidos políticos. É que nós temos um Mestre que se sentou (e continua sentado) à mesa do pão e do diálogo, com todos. Pese embora o escândalo dos puritanos e fariseus. O Deus que anunciamos ensina e lembra-nos que “prefere a misericórdia ao sacrifício”. A Igreja, nossa Mãe, é caminho e meio de salvação para todos, mas sabemos que ela não faz o Espírito de Deus prisioneiro das suas dimensões. E convida-nos a ser arautos e construtores da paz, mas adverte que não pode haver paz sem perdão.
Passados vinte e cinco anos de ministério episcopal, não vou inventariar o que foi feito, o que foi esquecido ou omitido, mas apenas dizer como vejo o futuro da Igreja do Porto, em preocupação e em projecto.
Enquanto preparávamos o início do terceiro milénio e celebrávamos o Grande Jubileu do ano 2000, reflectíamos sobre o conceito de “nova evangelização” e os modos de a implementar, em resposta ao apelo do Santo Padre (cf. Christif. Laici, n.ºs 34ss). Entretanto o próprio Papa se e nos interrogava sobre a necessidade de uma primeira evangelização. De facto, nos vários níveis ou áreas de inculturação do Evangelho ou de evangelização de povos, culturas, estruturas ou indivíduos, surgiram e perduram apelos naturais e sinais significativos de que, sendo imperioso promover uma nova evangelização, também em não poucos casos é necessário fazer o primeiro anúncio do Evangelho.
Assim, a indiscutível prioridade pastoral desta Diocese do Porto é a Evangelização, como anúncio, como retoma e como educação e formação, tendo como base os valores humanos, individuais e sociais, e formando a personalidade cristã mediante a leitura e meditação da Palavra de Deus. Como escreveu o Papa, “é necessário que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, segundo a antiga e sempre válida tradição da lectio divina: esta permite ler o texto bíblico como palavra viva que interpela, orienta e plasma a existência” (cf. Pastores gregis, n.º 15).
Esta prioridade não é exclusiva ou excludente nem é restritiva, mas abrangente, nomeadamente em relação a outras áreas ou prioridade implicadas e supostas no enunciado programático para o futuro que já começou.
Concretamente, ocupar-nos-emos da vasta problemática da Família, “justamente chamada ‘igreja doméstica’, espaço aberto à presença do Senhor Jesus, santuário da vida” (Past. greg. n.º 25). Fundada sobre o Sacramento do Matrimónio, a família cristã é para nós símbolo e referência de valores a defender e promover no ambiente da sociedade civil. Para isso continuaremos a fomentar e apoiar uma Pastoral familiar eficiente em todo o espaço da Diocese.
Dedicaremos especial cuidado à “evangelização e acompanhamento espiritual dos jovens” (id. 53). Conhecemos os seus problemas, atitudes e até objecções contra a Igreja, e é por isso que poremos em prática, ainda mais, “um ministério de esperança”, já que consideramos os jovens como “sentinelas da manhã” no mundo novo que não construiremos sem eles.
Reconhecemos que “há necessidade de educar os jovens para descobrirem a própria vida como vocação” e que importa “reforçar a dimensão vocacional de toda a acção pastoral” (id. 54). A vocação baptismal está na primeira linha da evangelização e da vida cristã, mas as vocações de consagração (sacerdotais, religiosas e missionárias) pertencem ao núcleo essencial da Igreja e são essenciais para a evangelização, dinamismo e o crescimento da mesma Igreja.
Nestas preocupações pastorais que cabem no título e âmbito da evangelização conta-se também e ainda a dimensão social que, perante a globalização que caracteriza o mundo actual, entendemos como “globalização na caridade, sem marginalização” (id. 69), na defesa da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, e no respeito pelo princípio de subsidiariedade. Justiça social, solidariedade e caridade são dimensões da evangelização e garantes da sua credibilidade e eficácia.
Não se trata de ideias e projectos pessoais do Bispo. Estas são preocupações e dimensões partilhadas e vividas em corresponsabilidade e comunhão: Corresponsabilidade e comunhão dos Senhores Bispos auxiliares, do Conselho Presbiteral, do Conselho Pastoral Diocesano e quantos se vêm empenhando no estudo, em sugestões oportunas e em acção pastoral sobre os temas agora apontados, e até na programação já visível na Diocese. Porque todos queremos viver e que se viva um Cristianismo em que seja possível a experiência de Deus. Um Cristianismo de solidariedade e comunhão, de paz, partilha e perdão. De liberdade e justiça. Um Cristianismo esclarecido e crítico, que recusa a intolerância religiosa e não pactua com fundamentalismos. Um Cristianismo de acção numa Igreja de todos os baptizados, na qual a hierarquia e o laicado conheçam o seu lugar e função para realizarem com harmonia a tarefa comum que é estar no mundo para ser sinal e caminho de salvação, partilhando “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje” (G. S. 1).
Este é o momento de mais uma vez dar graças a Deus pelo dom do ministério episcopal exercido ao longo de vinte e cinco anos com a sua graça e as bênçãos maternais de Maria, Mãe da Igreja e padroeira desta cidade e diocese.
Para agradecer ao Santo Padre a confiança que depositou em mim e a gentileza paternal e fraterna de me enviar a Sua Bênção como expressão da Caridade que une e preside. Para agradecer ao Senhor Núncio Apostólico, impossibilitado de estar presente, a mensagem de amizade que se dignou enviar-me.
Para agradecer às Ex.mas autoridades a sua grata presença nesta Celebração. Os meus cumprimentos de muito respeito e dos melhores votos.
Aos meus diocesanos, de ontem, e de hoje, aqui presentes em dimensão hierárquica ou laical, ou em união connosco na oração e comunhão de que toda a Diocese é testemunha. Ao pensar nos Sacerdotes e Leigos desta Diocese, no Povo de Deus e na sociedade que aqui está e sinto confiada à minha solicitude pastoral, recordo o meu lema de acção-servo, ao serviço de todos, e percebo que a reflexão silenciosa deveria sobrepor-se a quaisquer palavras e celebrações.
Finalmente, devo palavras de especial amizade e gratidão aos Senhores Arcebispos e Bispos de Portugal, aqui reunidos comigo e todos em união com o Bispo de Roma.
O Pontifical da Ordenação lembra esta condição e dever de colegialidade episcopal. “Esta união colegial entre os Bispos funda-se conjuntamente sobre a ordenação episcopal e a comunhão hierárquica com a Cabeça do Colégio e com os membros” que pertencem ao Colégio Episcopal. Acreditamos que as funções recebidas na ordenação episcopal devem ser exercidas em comunhão hierárquica, embora de modo distinto pela diversidade de situações imediatas. Se nem sempre a colegialidade efectiva é possível ou perfeita e total, a nossa colegialidade afectiva mantém-se sempre como marca de comunhão e expressão de amizade (cf. Past. greg. n.º 8). Ao fim de vinte e cinco anos de ministério episcopal, apraz-me confessar, perante esta multidão de testemunhas, que o meu ministério episcopal nunca foi tão feliz e conseguido como quando experimentei a graça desta amizade, colegialidade e comunhão com o Colégio Episcopal na pessoas da Cabeça (o Bispo de Roma) e de todos os membros do Colégio Episcopal, aqui presentes em cada um de V. Ex.cias, Senhor Presidente e Senhores Membros da Conferência Episcopal Portuguesa.
E é por este testemunho que desejo sintetizar toda a minha gratidão neste dia.
Porto, 25 de Março de 2004
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto