A maioria dos pais, dos professores, dos funcionários públicos, podemos mesmo dizer dos cidadãos em geral, para além daqueles que fazem dessa atitude uma vocação ou praticam um voluntariado permanente e generoso, entende a sua vida como um serviço aos outros e procura orientar nesse sentido o que é e o que faz.
Porém, vão surgindo, um pouco por todo o lado, grupos ou indivíduos com manifesta vocação de senhores ou de donos, os quais, para que não haja dúvidas do que são ou pretendem, o proclamam, alto e em bom som, beneficiando das horas nobres dos horários televisivos os das primeiras páginas dos jornais.
São estudantes que se dizem donos das escolas e as fecham a cadeado; são grupos de mulheres que se proclamam donas do seu corpo e decidem da vida de filhos que geraram e trazem no seio; são empresários que se consideram donos dos seus operários e os atiram para o desemprego, sem juízo nem apelo; são automobilistas que se pensam donos da estrada e nela semeiam perigo e morte; são partidos políticos que se arvoram em donos de todos os infelizes do reino; são filhos que decidem da vida dos seus pais idosos, os tiram da casa que construíram e onde os criaram e os deixam em urgências de hospitais ou em lares de gente que eles não conhecem; são pais que impõem aos filhos os seus sonhos e projectos e lhes negam a liberdade de escolherem e construírem eles mesmos o seu futuro; são autarcas e políticos que dispensam colaboradores necessários e agem como se tudo lhes pertencesse, ainda que por pouco tempo…
Ser dono e senhor é uma tentação que pode atingir a todos, na Igreja, na sociedade civil, na vida empresarial e política, na família e até no metro quadrado que cada um julga ser apenas seu.
Uma sociedade em que prolifere o clima de senhorio não vai longe. Estados em que havia apenas um dono ruíram como muros velhos e carcomidos; regimes políticos que só admitem cidadãos atentos à voz do senhor, estiolam; comunidades locais, regidas pela batuta indiscutível de quem a elas preside, onde se calam as vozes dissonantes e não se aproveita o contributo de quem tem algo para dizer e fazer, não têm mais futuro; famílias onde aí reina o “aqui mando eu”, já não são famílias.
A verdade é que ninguém se basta a si próprio e todos precisam de todos. Os donos são sempre os que presumem daquilo que não têm nem são e, com o seu grito mentiroso, abafam a sua indigência. Ninguém tem categoria para ser dono de alguém. O valor de todos é radicalmente igual. O ser humano de poucas semanas que se desenvolve pacificamente no seu ambiente natural, o ventre materno, ou o velhinho que cabeceia de sono no canto de um grande salão pejado de outros como ele, valem tanto como o primeiro magistrado da nação ou como o futebolista pago a peso de ouro. Os seus direitos, porém, são redobrados, porque não se podem defender dos abusivos agressores, arvorados em seus donos e senhores.
A geração dos senhores e dos donos, se se deixa crescer impunemente e se continua a merecer, como está acontecendo em alguns casos, o favor escandaloso da comunicação social, constitui um obstáculo para a humanização da nossa sociedade. Trata-se de uma mentira arvorada em direito, uma falsidade com pés de barro, uma subcultura perigosa, uma atraso civilizacional, uma tentativa de subversão da sociedade que clama pelos direitos humanos e já não dispensa um clima democrático, onde todos se sintam radicalmente iguais e ninguém possa espezinhar, como se fora uma coisa, o semelhante mais humilde.