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Falar da Igreja sem falar do mundo? Resposta chega do Vaticano

Octávio Carmo
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40 anos depois da «Gaudium et Spes», falta muito por percorrer

Qual o papel da Igreja na sociedade actual? Como pode ser protagonista na construção da justiça e da paz? Estas sãos as perguntas a Igreja Católica tem procurado dar resposta no ano em que se assinalam os 40 anos sobre a promulgação da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes†(GS), o documento do II Concílio do Vaticano sobre a Igreja no mundo contemporâneo. O exemplo vem do Vaticano, onde o Conselho Pontifício Justiça e Paz está a promover um simpósio sobre o tema "O apelo à justiça: a herança da Gaudium et Spes a 40 anos da sua promulgação". Apesar de não ter feito ouvir a sua voz, a palavra de João Paulo II apareceu sob a forma de uma mensagem na qual o Papa alerta para a necessidade de não esquecer as “questões fundamentais da justiça†num momento em que o mundo se vê confrontado com “os enormes progressos da ciência e da tecnologiaâ€. O texto papal mostra, como defendeu o historiador Andrea Riccardi, que a Igreja “mantém os olhos abertos para as questões do mundo modernoâ€. “Muitos sublinham que a cultura política e social da GS foi superada, mas o fundo decisivo permanece: a Igreja declara-se dentro dos problemas da história. Não é possível falar da Igreja sem evocar problemas, situações, contextos do mundo contemporâneoâ€, explicou o fundador da Comunidade de Santo Egídio. A mensagem de João Paulo II lembra, nesse sentido, que “a Igreja está constantemente comprometida em lembrar a todos os crentes a necessidade de interpretar as realidades sociais à luz do Evangelhoâ€. A mesma chave de leitura sobre a GS foi apresentada pelo Cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado do Vaticano, para quem “todos se devem sentir chamados a um compromisso no mundo, não menos necessário e urgente nos nossos diasâ€. A acção da Igreja no mundo apresenta-se, assim, ligada ao “pleno desenvolvimento da personalidade de cada ser humano e à promoção dos seus direitos fundamentais, dignidade e liberdadeâ€, como referiu o Cardeal Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo. Pré-Concílio? Os 40 anos da Constituição Pastoral "Gaudium et Spes", que surgiu sob a invocação da alegria e da esperança, têm estado em debate no Centro Nacional de Cultura por iniciativa do Centro de Reflexão Cristã. Esta semana, o tema proposto para debate foi o “Papel da Igreja no mundo contemporâneoâ€. Armando Sales Luís, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), explica que os apelos lançados há 40 anos precisam de ser reformulados, “porque é preciso perceber que neste novo mundo precisamos de outras coisasâ€. “A Nova Evangelização implica esquemas, pedagogias e esquemas completamente diferentesâ€, apontou à Agência ECCLESIA. Entre as grandes mudanças acontecidas desde 1965, o presidente da CNJP assinala “o desaparecimento das nações no sentido clássico do termoâ€, “a globalização†e “a pobreza extrema que contrasta com a riqueza de outrosâ€. Isabel Allegro de Magalhães, membro do Graal - movimento internacional de mulheres cristãs -, considera que a Igreja vive, hoje em dia, “numa fase pré-conciliar em muitos aspectosâ€. “A GS tem apelos que são actualíssimos sobre a necessidade de mudança, na forma de ver a relação da Igreja com o mundo, que não estão a ser trabalhadosâ€, alerta em declarações à Agência ECCLESIA. O balanço que a Isabel Allegro traça da Constituição Pastoral GS faz com que sinta a necessidade de partilhar “as inquietações e preocupações que vivo hoje, como mulher cristã da minha geraçãoâ€. “Gostaria que nós, hierarquia e leigos, fizéssemos um mais sério e assíduo trabalho de inculturação da igreja em Portugal. Gostava que as diversas possibilidades fossem debatidas, por exemplo, que fosse mais pensada a situação de marginalização (quase) sistemática das mulheres na Igreja, a hipótese de serem ordenados homens casados, etcâ€, assinalou na sua intervenção sobre o papel da Igreja no mundo contemporâneo. Isabel Allegro mostra-se ainda preocupada pelo que considera ser o “decréscimo o reconhecimento do papel dos leigos na Igreja e no Mundo, por parte da Hierarquiaâ€. “Gostava de poder sentir da parte da hierarquia uma confiança ilimitada nas competências de leigos, cujo contributo de pensamento sobre a Igreja e as questões da sociedade ou do mundo (tantas vezes ignorado ou mesmo liminarmente rejeitado sem escuta) poderia tornar-se decisivoâ€, acrescenta. Sobre os desafios que a GS ainda deixa à Igreja de hoje, Isabel Allegro deixa uma questão: “será que a sociedade portuguesa sente a Igreja em Portugal como voz evangélica por excelência, voz que se ergue do lado do serviço, ao lado dos mais desfavorecidos e excluídos, visivelmente empenhada na transformação da sociedade, para ela poder ser mais Reino de Deus?â€. Alegria e Esperança A Igreja do nossos tempos viu-se colocada dentro de um mundo que se desenvolveu segundo leis próprias e mecanismos cujo controlo escapou, legitimamente, à alçada do religioso. Atendendo a esta conjuntura, o II Concílio do Vaticano propõe a GS, um documento singular, precioso pelo seu alcance e actualidade. A realidade histórica e meta-histórica que é o Povo de Deus considera-se na sua existência neste mundo, nele vivendo e actuando na certeza de que o seu fim salvador e escatológico não é tarefa passível de conclusão no mesmo. A demissão da vida terrena, porém, constitui uma falha grave na missão de todo o cristão em ser sal da terra, conforme o mandato evangélico. A função que a Igreja tem a desempenhar no mundo reveste-se da maior importância, porque visa revelar uma “verdade profunda†sobre a destinação do homem e do universo. A mensagem de Cristo deve iluminar o mundo inteiro, estabelecendo pontes para o diálogo entre todos os povos, ajudando a edificar a paz, sarando as feridas que tantas vezes marcam as relações entre as sociedades. Empenhada numa parceria de diálogo, a Igreja assume como suas as preocupações da humanidade, as angústias do mundo de hoje, as questões fundamentais sobre o sentido da existência. Essa mesma Igreja reconhece uma legítima autonomia ao seu parceiro de diálogo, um mundo capaz de um progresso autêntico e humano: “o Concílio considera com muito respeito o que há de bom nas instituições tão diversas que o género humano criou e, sem cessar, continua a criar†(GS, nº 42). A Igreja não ignora o quanto recebeu da história e mostra-se “firmemente persuadida de que pode receber muita ajuda de vários modos, do mundo, pelas qualidades e acções dos indivíduos e das sociedades†(GS nº 40).


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