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Férias ao ritmo das tradições religiosas

J. Pinharanda Gomes
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Férias e festas são bens do tempo comum. Entre Pentecostes e Advento, o tempo perde alguma solenidade, mas ganha em popular criatividade. Às solenes festas do Senhor sucedem-se as festas dos santos. Há como que um transcurso do universal culto para a particular devoção. Logo a seguir ao Domingo de Páscoa já se identificam sinais de Assunção Mariana, como se vê no caso de Nossa Senhora de Mércoles (à quarta-feira) que, em Castelo Branco se festeja na quarta-feira a seguir à Páscoa, como que em prólogo ao longo ciclo Mariano: ciclo da alegria. Se a festa universal do Corpus Christi (ou Corpo de Deus) de algum modo, pela memória da instituição eucarística, representa o maior mistério em pleno tempo comum, a solenidade de Nossa Senhora da Assunção vem a ser como que o eixo de todas as festas, marianas ou santorais, que se celebram por toda a parte sob milhentas invocações, quer antes quer depois da Assunção. É um período já estival, desde o diluir da Primavera ao ascenso do Outono, período esse que poderíamos, brincando, situar entre o começo das cerejas e o fim das uvas. São Martinho começa a ficar um pouco longe, sobretudo porque as férias já foram e as levas de pessoal que vem de longe à terra, já houveram de regressar. A urbe tem menor sentido do entrosamento férias/festas, porque acedeu a um grau de profanidade, derivada da insubsistência da vida citadina fruto da difícil tarefa de se constituir em comunidades festivas. O mundo rural prevalece no uso e costume da sua religiosidade, em que profano e sagrado se entrosam, mediante uma recepção dos valores tradicionais e uma ampliação de factores modernos. O fenómeno da emigração despovoou aldeias, paróquias e anexos. Em cada ano se instituíam um ou dois casais no cargo de mordomos da festa, para que esta tivesse lugar no tempo e no momento assinalados. A santa ou o santo como que se tornavam afilhados dos mordomos, por isso que estes, contraindo como que parentesco, passavam a tratar-se por comadres e compadres. Hoje, aldeias despovoadas, este vínculo de festiva frater-nidade comunial privilégio, tornou-se difícil, pelo que as mordomias são por via de regra substituídas por Comissões de Festas das Paróquias, ou, em algumas anexas, já se realizam festas religiosas aos oragos locais ou às imagens de capelas e de ermidas, organizadas por colectividades de cultura e recreio em sintonia cooperativa com a sede paroquial. Ao despovoamento responde a compensação da visita dos filhos emigrados. Vêm de França, da Inglaterra, da Alemanha, mesmo (embora menos) da América, talvez mais nos Açores. Enchem as aldeias. Crianças bilingues brincam nas ruas, conhecem-se e identificam comunidade de raízes. Falam umas com as outras, em línguas estranhas e, com os residentes em português. A par escutamos os sons do francês de Paris e os arcaicos fonemas do português trans-montano, beirão ou alentejano. Sem o regresso dos emigrantes, por três ou quatro semanas, a religiosidade popular seria coisa do passado, mas os emigrantes revigoram a tradição. Querem a festa. Para eles é o prato sacral da viagem: o regresso às raízes, a partilha das aventuras, dos bens e dos males, o deleite dos reencontros e, ainda, o retomar o sabor das boas coisas da terra. Alteram o ritmo do quotidiano, até na ordem económica. Por via de regra abonados (porque a prudência os induziu à poupança) esgotam manhã, manhãzinha, os produtos tradicionais de comes e bebes nos mercados semanais da vila. Compram, tanto para consumir na terra, como para levarem para os países onde trabalham. A economia rural beneficia. A mulher dos queijos sabe que estratégia seguir para obter maior margem e ter a venda garantida. E o mesmo se diz do homem dos enchidos e dos presuntos e do engarrafador de vinhos. Estes regressos têm a dupla valência de turismo e de peregrinação. A loca sancta é a terra natal. A imagem divina é a que o santo festejado transmite. Muitas pessoas que, em férias, dão um útil apoio aos festeiros, sobre tudo contribuindo com meios materiais, talvez não hajam recebido da Igreja mais do que o Baptismo ou, no caso de gente casada, além do Baptismo, o Matrimónio. A festa será a única catequese por essa muitíssima gente vista, ouvida e aprendida. Tudo em religioso sincretismo: o arraial, os foguetes, o bazar, a quermesse, os festões, as bandeiras, as flores pelas ruas, os tapetes de pétalas, a procissão, as colgaduras nas janelas e nas sacada. As ruas varridas, por elas passará o Santo Lenho, nas mãos do senhor Prior, solene, sob o pálio, a cujas varas pegam homens de honra, todos os da comunidade desejando esse privilégio. E a banda de música, e o andor ou os andores, os santinhos felizes, vê-se que sorridentes, nos floridos tronos em que os põem para a viagem processional (triunfo, saída em glória) - os andores. A honra de pegar a uma perna do andor, ou em certas localidades, a honra de meter a imagem na capela, até para o ano que vem. Finda a procissão, dada a bênção final, saídos o Santo Lenho, o pálio e o sacerdote, arrematam-se as pernas do andor. Quem dá mais? Promitentes ao desafio, mas também, mocidade e gente madura, em compita ao social, para ganhar o privilégio de meter a imagem na ermida, dando a festa por finda. Outra começa depois: a música e, também, esses barulhentos pum-puns dos conjuntos, pela noite fora, animando outro segmento de comunidade. Onde vais? - À festa. De onde vens? - Da festa. Pelo contraste do som de voz se entende o enigma do júbilo e do retorno ao quotidiano. A religiosidade popular é um campo expectante. Precisa, não de interditos, mas de catequeses. Não se pode proibir um povo de adornar uma imagem com notas de banco. Tem de se instruir, com paciência, até ser ele, povo, a mudar o costume. Num campo expectante tudo é possível: lavrar, plantar, semear, ou joio, ou cizânia, ou pão e trigo. Quando se minora o compromisso com a religiosidade popular, abrimos as portas ao êxito de grupos, de seitas e de insólitas piedades religiosas. Se nada houver de excessivo nos costumes, se estes apenas forem expressão de alegria e de comunhão, sigamos o povo. Na procissão, o Pastor dos Pastores vem atrás. O rebanho não se perde. E o tempo comum é ainda tempo de Igreja. J. Pinharanda Gomes


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