Nacional

Festa do Senhor Santo Cristo nos Açores

D. António de Sousa Braga
...

Comentário do Bispo de Angra

Bem sei. As festas em honra do Senhor Santo Cristo não são só religiosas. Como toda e qualquer festa, entre nós, têm uma dimensão religiosa e outra profana. Há arraial e comércio, celebrações litúrgicas e manifestações culturais. Mas não são mero folclore religioso, para turista ver. Desde logo, porque envolvem toda a sociedade. Além disso, são uma expressão válida de vivência cristã. Não é só uma questão de tradição. Permanece a tradição, porque é significativa para a vida em sociedade e para a expressão popular da fé. E quando digo «popular» não estou a contrapor o termo a «oficial e institucional», porquanto esta forma de piedade tem claro apoio hierárquico. Também não me refiro à massa do povo, na acepção marxista de «classe dominada», pois a devoção ao Senhor Santo Cristo abrange pessoas de todas as condições sociais. Nem tão pouco, isso é sinónimo de fé menos esclarecida. Tem na sua base a intuição fundamental do mistério cristão: a Incarnação de Deus em Jesus Cristo. Por isso, a Sua veneração, sob a imagem do «Ecce Homo», não é uma devoção qualquer, entre tantas. A Madre Teresa da Anunciada viveu-a e difundiu-a, dentro de uma robusta espiritualidade, centrada na Pessoa de Cristo, que revela o Deus-Amor. Não o Deus distante dos Filósofos ou o Motor Imóvel, de que fala Aristóteles. O Deus vivo e verdadeiro, revelado por Jesus Cristo é um Deus com «pathos», cheio de paixão e de compaixão. Assim O define S. João: «Deus é Amor». A Paixão de Jesus é a paixão de Deus pela humanidade. O Crucificado revela um Deus, aliado da humanidade. É esta cumplicidade e sentido de aliança, que experimentam os devotos do Senhor Santo Cristo. O Deus-Amor «incarnou» de verdade na vida humana. O nosso imaginário coloca facilmente Deus, lá longe no alto dos Céus, fora da existência humana. Imaginamos a Incarnação de Deus, como «descida» da divindade e a Ascensão de Jesus, como «subida» ao Céu. Na realidade, pela Incarnação e pela Redenção, Deus «humanou»: está presente em todas as situações humanas, por mais dolorosas que sejam. Não há drama humano, que Deus não possa «visitar» e compartilhar. Na Paixão de Jesus, Ele é realmente Deus-Connosco. A Cruz de Cristo manifesta o verdadeiro nome de Deus. O Seu nome é Amor, que Se faz próximo e aliado de cada ser humano. Mais do que teorizar sobre a piedade popular, importa abordá-la, como terreno sagrado, onde se cruza o mistério de Deus com o mistério do homem. O que é preciso é fazer como Moisés, perante a misteriosa sarça ardente: tirar as sandálias e todo o equipamento teórico, que pretenda encerrar o mistério de Deus em esquemas fixos, que não abrangem a incomensurável riqueza do Seu amor. Todavia, há um aspecto da espiritualidade da Madre Teresa da Anunciada que, porventura, ainda não foi devidamente desenvolvido e que, de algum modo, constitui a originalidade da devoção ao Senhor Santo Cristo. Ele é venerado num dos «passos» da Paixão. Por vontade expressa da Madre Teresa da Anunciada, a festa realiza-se em pleno Tempo Pascal, em que a Igreja celebra a Ressurreição de Jesus. Temos aqui uma abordagem completa do Mistério Pascal : Paixão-Morte e Ressurreição. Com a festa em honra do Senhor Santo Cristo, a mística micaelense entende celebrar a realeza de Cristo. E é pelo Mistério Pascal, na sua inteireza, que Jesus é constituído Rei e Senhor. Por isso, a celebração do «Ecce Homo», mais própria de Sexta-Feira Santa, é feita com grande solenidade e esplendor. Eis uma intuição de fé, que mereceria ser mais interiorizada. É relativamente mais fácil identificar-se com o «Ecce Homo», solidário connosco, nas agruras da vida. Mas Ele é nosso aliado, também na vitória da Ressurreição, semente de regeneração humana. É a partir da realidade nua e crua da vida, com todas as suas contrariedades e contradições, que temos de afirmar a força renovadora da Ressurreição de Jesus. Foi o «Ecce Homo» que ressuscitou. N’Ele e com Ele, também nós venceremos a morte e a opressão. Seguindo os Seus «passos», alcançaremos a vitória final. A Paixão é caminho de Ressurreição. Total é a solidariedade e inquebrantável a aliança com o «Ecce Homo»: tanto na Paixão, como na Ressurreição. Não é, pois, um povo resignado que se ajoelha diante da imagem do Senhor Santo Cristo. É um povo que quer ressuscitar e vencer. E sabe que isso é possível. Vive essa certeza, em esperança activa e comprometida. + António, Bispo de Angra


Diocese de Angra