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Grupo de trabalho inter-religioso vai acompanhar regulamentação da assistência espiritual nos hospitais

Rui Martins
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Ministra da Saúde reconhece que novo ordenamento legal implica «mudança muito grande» na prática dos estabelecimentos hospitalares

A constituição de um grupo de trabalho inter-religioso, para acompanhar a aplicação do decreto-lei que regulamenta a assistência espiritual nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, é um dos elementos da declaração final do encontro entre representantes de vários credos que decorreu esta Terça-feira em Lisboa.

O documento prevê igualmente prever a criação de um manual para assistência religiosa, que será difundido em grande escala.

Durante a reunião, que decorreu na Universidade Católica, a ministra da Saúde, Ana Jorge, concordou na necessidade de acompanhar a implementação da lei, aspecto referido por grande parte dos representantes que participaram no encontro.

Ana Jorge considerou que o novo ordenamento legal “implica uma mudança muito grande na prática de muitas instituições”, pelo que é necessário antecipar as especificidades de cada credo, evitando que pequenos problemas se transformem em grandes obstáculos à assistência religiosa nos hospitais.

Para o presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, D. Carlos Azevedo, o acompanhamento espiritual “não é o jogo do ganha ou perde”, mas "um serviço ao maior bem da pessoa, no respeito pela sua identidade”.

O coordenador da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde, Mons. Feytor Pinto, sublinhou que a tolerância, a convivência, o diálogo e a solidariedade são factores sem os quais “a sociedade plural não funciona”. Neste sentido, “a Igreja Católica está empenhada num são ecumenismo e diálogo inter-religioso”.

Em todas as religiões, “a grande preocupação é sempre a da espiritualidade”, que “é um elemento com dimensão clínica”, afirmou o sacerdote.

O assistente dos Médicos Católicos da Diocese de Lisboa afirmou que a Igreja pretendia a criação de “um conselho nacional onde o Ministério da Saúde tivesse assento”. A proposta não foi aceite, pelo que se procurou “substituí-la pela ideia de uma comissão que pretende garantir os direitos religiosos a todos os doentes”.

Neste sentido, Mons. Feytor Pinto aludiu à necessidade de os hospitais preverem um regulamento que defina a integração da Igreja Católica e das outras religiões no novo enquadramento legal.

“Isto implica uma orientação que seja suficientemente clara para ninguém ser sacrificado”, afirmou.

O coordenador nacional das Capelanias Hospitalares, Pe. José Nuno, testemunhou “o empenho colocado pela senhora ministra da Saúde em estar neste encontro” e agradeceu “aos meus irmãos de outros credos que estão presentes”.

“Ao longo destes anos trabalhámos para tornar possível este decreto-lei”, que, apesar de ainda ser insuficiente, “oferece um horizonte novo às religiões”, afirmou o responsável.

Durante este processo, a Igreja procurou "defender o sistema de saúde de opções ideológicas redutoras”, contribuindo para a “aprendizagem de uma laicidade positiva”, observou o Pe. José Nuno.

Representantes das confissões religiosas satisfeitos como novo decreto-lei

O Pe. Alexandre Bonito, da Igreja Ortodoxa Grega, explicou que a sua comunidade prestava assistência aos doentes “de forma pessoal e não regulamentada, o que criava alguns obstáculos”. “Era um clandestino e hoje passei à legalidade”, disse.

O bispo Fernando Soares, da Igreja Lusitana, assinalou que "durante muitos anos, no Hospital de São João, no Porto, foi criado um espírito de grande participação entre diversas comunidades religiosas, particularmente as cristãs”.

O representante do Conselho Português das Igrejas Cristãs afirmou igualmente que “é a partir da relação da compreensão ecuménica que se criam as condições para que outros passos se possam dar no futuro”. “Estamos aqui para servir”, concluiu.

O presidente da Aliança Evangélica Portuguesa considerou que, “em teoria”, os seus representantes nunca tiveram grandes dificuldades; “mas na prática não é assim”. Era “bastante desagradável” viver na “clandestinidade” e à mercê “do humor do segurança” do hospital, referiu.

Jorge Humberto explicou que alguns pastores foram “impedidos de exercer o seu múnus devido ao facto de as unidades hospitalares não reconhecerem esse direito”.

“Como os evangélicos têm uma cultura de sofrer calados, nunca fizemos eco das imensas discriminações que foram feitas no nosso país durante muitos anos”, constatou o Pastor.

Muitas vezes havia a consciência de que a autorização para a visita aos doentes era concedida “não por direito, mas porque alguém “fazia o favor” de permitir esse contacto, referiu o responsável.

O novo ordenamento jurídico “muda totalmente as coisas”, na medida em que o acompanhamento pastoral dos utentes “não é um acto de boa vontade da administração, do enfermeiro-chefe ou do porteiro, mas algo que está consagrado na lei”, esclareceu Jorge Humberto.

Para o director da área da Religião da Comunidade Israelita de Lisboa, o novo enquadramento jurídico “não vai alterar grande coisa do ponto de vista prático, porque nunca tivemos problema neste país em prestar assistência a quem está internado, à excepção de alguns detalhes que foram resolvidos com mais ou menos rapidez”.

José Ruah está convencido de que a nova legislação “é muito importante” porque consagra “o respeito pelas diferenças religiosas”, traduzindo “um avanço na cidadania e na liberdade religiosa”.

Do ponto de vista judaico, a presença nos hospitais concentra-se no acompanhamento aos moribundos: na iminência da morte, “a pessoa deve ouvir as orações apropriadas para esse momento”.

“Podem fazer-se orações desejando o restabelecimento das pessoas”, mas os “judeus sempre confiaram na medicina, sabendo, evidentemente, que a importância do Criador é por demais importante”, explicou José Ruah.

O delegado da Comunidade Islâmica de Lisboa, Abdool Vakil, disse que “nunca nos foi negado o direito de dar assistência religiosa nos hospitais, à semelhança do que acontece nas prisões”. “Agora passa a estar consagrado na lei o que nos faziam por gentileza e simpatia”, sintetizou.

Até ao presente, “o entendimento com a Igreja Católica tem sido tácito”. “Nestas coisas – acrescentou o responsável – não é preciso escrever: basta que entendamos que temos um fim comum”. “Na religião islâmica – esclareceu Abdool Vakil - não precisamos de intermediário para ir a Deus, mas não há dúvidas que o sacerdote ou os voluntários podem ser importantes para confortar o doente e para rezar por ele.”

O representante da Comunidade Hindu recordou que a sua religião “dependia muito do bom senso dos interlocutores”, havendo situações que tardavam em ser superadas”.

“Passavam-se dias até encontrar uma boa alma que pudesse superar os problemas”, indicou Ashok Hansraj. “A partir de agora, o acesso vai ser garantido por direito, e não pela mera providência”, afirmou.

“A reunião de hoje – recordou – é fruto do trabalho e da convivência com a Igreja Católica, que remonta à época em que Portugal administrava os territórios do Ultramar.”

As próximas etapas consistem na regulamentação da lei, atendendo, nomeadamente, aos preceitos alimentares das religiões, aspecto que foi mencionado pelas comunidades muçulmana, judaica e hindu. O Pe. Alexandre Bonito mencionou ainda a importância da formação dos voluntários que prestam assistência religiosa e espiritual aos doentes.



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