Nacional

Há religião no Alentejo

Octávio Carmo
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Exposição "As formas do Espírito" traz a Lisboa um património artístico e religioso insuspeito

A arte sacra do Baixo Alentejo volta a marcar presença no panorama cultural do país com uma exposição sob o Alto Patrocínio do Presidente da República, Jorge Sampaio, e da Santa Sé. A exposição “As Formas do Espírito”, que reúne cerca de 150 obras de arte sacra da região, está patente ao público no Palácio Nacional da Ajuda (Galeria de pintura do Rei D. Luís) desde o dia 17 de Dezembro. Considerado por José António Falcão, comissário da exposição, como “um ciclo dedicado às obras-primas da Diocese de Beja”, a presente exposição é o segundo passo de um projecto que já passou por Roma, de Dezembro de 2002 a Julho de 2003, no Istituto Portoghese di Sant’Antonio. “Procuramos dar a conhecer, sobretudo, as raízes da espiritualidade do Baixo Alentejo, um território muito aberto a outras religiões, como o Judaísmo e o Islamismo, que procuramos abordar aqui numa perspectiva de diálogo entre as 3 religiões de livro”, refere. As peças evidenciam, de facto, a relação entre o cristianismo e a presença árabe e judaica na região. O legado islâmico é perfeitamente visível num conjunto de relicários pertencentes ao paço episcopal de Beja, que serviram primitivamente para guardar cosméticos. "A ligação mais forte é com o Islão, o Judaísmo aparece mais como uma sombra", diz o comissário. ESPIRTUALIDADE MÍSTICA A abordagem da espiritualidade do “homem alentejano” que a exposição deixa transparecer segue o percurso clássico da via contemplativa: o espaço está divido em três núcleos que levam o visitante do chamamento (O Crepúsculo) ao reencontro pleno com Deus (A Aurora), passando pelo período solitário da prova (A Noite). A iconografia ligada ao núcleo do “Crepúsculo” mostra imagens profundamente enraizadas na espiritualidade do Baixo Alentejo, como constata José António Falcão, no programa ECCLESIA. “Há outros tipos de sinais, mais subliminares se quisermos: a cor, a luz, o próprio apelo que cada imagem lança sobre o visitante”, explica. Depois do período de chamamento vem aquilo a que São João da Cruz chama de “noite escura” da alma. “Foi inspirando-nos no santo carmelita que denominamos a segunda secção, alusiva à figura de Cristo, como A Noite. É uma noite de prova, introspecção, sofrimento”, comenta o comissário. A paixão de Cristo, a lamentação da Virgem e a sepultura de Jesus são imagens que viriam a marcar a devoção dos portugueses. A terceira secção, que trata do encontro com Deus, manifesta-se numa explosão de cores, luz, formas e volumes. “Há aqui uma iconografia muito apropriada que mostra esta confiança, esta entrega nas mãos de Deus. A Aurora trata de todo este tipo de realidades, no encontro entre o fiel e a divindade”, aponta José António Falcão. ENCRUZILHADA DE CULTURAS Os objectos agora apresentados remontam do século VI até à actualidade. Além de apresentar matizes culturais muito próprias, a exposição denota a abertura a outras civilizações, desde a Pérsia e o Egipto até à Índia e à China: materiais como coral, filigrana ouro, cristal de rocha e vidro pintado, que podemos encontrar nos terços, “mostram a aproximação entre o hinduísmo, o budismo, a cultura muçulmana e o cristianismo, na devoção e no uso de alfaias deste tipo”, assegura o director do Departamento do Património Histórico da Diocese de Beja. O Alentejo aparece assim como um território aberto ao mundo, “testemunho da vocação universal dos portugueses”. Exemplo destas encruzilhadas é uma imagem de Nossa Senhora da Saúde, em madeira, produzida por artífices hindus: “tanto podia ser utilizada como boneca como, no caso de ser transportada para um altar, imagem barroca com seus vestidos e jóias”, ilustra José António Falcão. Muitas das peças que atestam esta ligação deverão ter sido trazidas por cruzados, desta região, no âmbito de todo um comércio de relíquias que foi muito fecundo, ao tempo. Numa segunda fase são os clérigos e militares que fazem careira no Oriente, mormente na Índia, os veículos desta transmissão de património artístico. RELIGIOSIDADE ALENTEJANA Considerada durante longos anos como a região mais descristianizada, pobre e esquecida de Portugal, a Diocese de Beja volta a surpreender com a revelação dos seus tesouros de arte e de espiritualidade. “A região do Baixo Alentejo é altamente contemplativa, o que deriva da paisagem, da cultura, das civilizações que passaram por este território, ao clima. Isto leva a que a religiosidade, mesmo se profunda, nem sempre esteja acertada pelos cânones mais clássicos”, afirma o comissário da exposição. “Esta terra mantém tradições que remontam a épocas muito antigas, nomeadamente cultos patriarcais e cultos matriarcais. A ligação a Nossa Senhora enraíza neste movimento ancestral que a Igreja depois purificou”, refere ainda. Também a escolha das figuras dos santos assinala “balizas de uma caminhada espiritual perfeitamente definida”, acrescenta. De acordo com José António Falcão, não foi por acaso que se escolheram os padroeiro: “São Vicente aparece em terras de vinha, Santa Bárbara aparece nas regiões cerealíferas, São Miguel é uma presença permanente que mostra o apego dos alentejanos ao culto dos mortos”. GUIA DO VISITANTE Esta mostra, organizada pelo Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja em colaboração com o IPPAR, espelha, mais uma vez, o persistente trabalho de inventariação, estudo, restauro e valorização que está a ser efectuado – desde a fundação daquele organismo diocesano, no ano de 1984 – em cerca de meio milhar de igrejas, santuários, ermidas, capelas e mosteiros do Baixo Alentejo. A Galeria de Pintura do Rei D. Luís preparou um Serviço Educativo Especializado, de modo a dar o necessário apoio ao público visitante e a grupos de escolas dos vários níveis de ensino, desde que solicitado atempadamente. Desta forma, até 17 de Abril poderão ser marcadas visitas guiadas de terça a sexta-feira, com a duração de uma hora. Para grupos de crianças entre os 5 e os 12 anos, correspondendo ao 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico, as visitas são efectuadas da parte da manhã entre as 10h30 e as 12h30, sendo acompanhadas com um atellier pedagógico.


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