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Misericórdia e Piedade na iconografia portuguesa

Pe. António Vicente
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As Misericórdias, na época em que foram fundadas, representaram uma obra profundamente inovadora, surgiam como organização laical, no sentido em que a sua estrutura e a sua organização estavam entregues às confrarias de “irmãos”, que assumiam como “compromisso” praticar as obras de misericórdia corporais e espirituais, na clara inspiração evangélica. A iconografia das Misericórdias evoca, no plano da representação estética, profundas intuições, que se concentram no tema mariológico da Senhora da Piedade e da Misericórdia; o tema da Paixão e o da Misericórdia propriamente dito, ou seja, a representação estética do exercício concreto na atenção aos pobres, aos presos e aos doentes. A Senhora da Piedade é o acolhimento cheio de ternura do Seu único Filho nos seus braços, em cujas chagas se reconhecem os sofrimentos dos homens; na Senhora da Misericórdia, ou mesmo, a Senhora do Manto, a representação expressiva do sentir do povo cristão, que se sente acolhido e protegido sob o manto materno de Nossa Senhora. A peça aqui apresentada é uma bandeira da Misericórdia de Torres Novas, nas suas duas faces; uma armação em madeira, suportada por uma vara que a torna volante, sustentando duas telas, uma de cada lado, constitui, em traços gerais, a estrutura destas bandeiras simultaneamente catequéticas e simbólicas, que deram corpo ao emblema das Santas Casas da Misericórdia. Pintura de Bento Coelho da Silveira, da 2ª metade do século XVII.A Virgem coroada de mãos postas, com o manto aberto por quatro anjos, acolhe, à direita, o Papa com a tiara deposta, um frade trino com a identificação no hábito, um bispo mitrado e um cardeal; à esquerda, o rei envergando armadura e manto, de joelho flectido, com a coroa deposta, a rainha coroada de mãos postas, secundados por dois representantes do povo. Aos pés da Virgem, três cabeças de anjos e dois mendigos. No outro lado da tela, aos pés da cruz, a Virgem reclina-se sobre o corpo do Filho morto. À direita, S. João ampara o corpo de Cristo, enquanto Maria Madalena, à esquerda, lhe acaricia a mão, encostando-a à sua face. Ao lado da cruz, no topo, dois anjos piedosos choram a morte de Jesus. A coroa de espinhos e os três cravos por terra. Sem dúvida uma peça curiosa, esta bandeira, algumas vezes designada por Bandeira da Casa ou Pendão da Casa, ou ainda Bandeira real. Bandeira ou Pendão, pouco importa, bonito com certeza se pode ser nosso emblema de vida, de piedade e misericórdia, de acção e consolo, de fé e testemunho. Pe António Vicente, in Jornal Porta do Sol de 20/02/2005


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