No Norte de Portugal, nos séculos XVIII e XIX, já se celebravam as «Novenas ao Menino Jesus», precisamente nas madrugadas dos dias 16 a 24 de Dezembro. Eram Novenas de preparação para o Natal, como aliás entre nós ainda se celebram as Novenas de preparação para qualquer festa patronal. Essas novenas já incluíam Invitatório, invocação ao Espírito Santo, Ladainha de Nossa Senhora, Antífona, Jaculatórias ao Menino Jesus e meditação sobre o seu nascimento.
Em Lamego, por exemplo, também os rapazes madrugadores andavam pelas ruas, a chamar para a novena, tocando campainhas e cantado estrofes populares adequadas, tal como é tradição na Madeira.
Estas novenas do Menino Jesus, certamente trazidas para a Madeira pelos primeiros colonizadores, deram origem às nossas «Missas do Parto». Com efeito, a Igreja Universal celebrava a 17 de Dezembro a festa litúrgica de Nossa Senhora do «Ó» ou seja a Festa da Expectação de Nossa Senhora, pelo nascimento do seu divino Filho.
A mesma denominação de Festa do «Ó» tem origem nas Antífonas de Vésperas do Ofício Divino que, a partir do dia 17 e até ao 24 começam pelo vocativo «Ó»: «Ó Sabedoria do Altíssimo…, Ó Chefe da Casa de Israel…, Ó Rebento da raiz de Jessé…, Ó Chave da Casa de David…; Ó Emanuel…, Ó Rei das Nações…, Ó Sol nascente…»
Na sua sensibilidade, raciocínios e deduções, o povo madeirense associou o «Ó» destas antífonas ao estado de gravidez da Virgem Maria, que daria à luz o seu divino Filho, ao findar essa semana. Daí o chamar-se a estas Novenas do Menino Jesus, as «Missas do Parto».
Pelo menos desde o século XIX a Senhora do «Ó» é conhecida na Madeira como a «Virgem do Parto».
À Senhora do «Ó» ou «Virgem do Parto», os madeirenses associam também o culto à Senhora da Conceição, tema obrigatório nos cantos das «Missas do Parto», assim como também a Senhora do Rosário.
As «Missas do Parto» deverão começar a ser celebradas a partir do dia 16 de Dezembro com encerramento no dia 24. Assim manda a liturgia cimentada na tradição. Outra característica inerente às Missas do Parto, é a hora da celebração: antes do amanhecer, antes do nascer do Sol, para daí haurir toda a espiritualidade das mesmas que honram a Virgem Maria, denominada a «Aurora» da Redenção, aquela que vai dar à luz o Sol Divino a toda a humanidade.
Raiz cultural de mais de quatro séculos
A origem dos cânticos das «Missa do Parto» que chegaram até nós, continua a ser uma questão delicada ainda não totalmente desvendada por aqueles que se têm debruçado no seu estudo.
O Pe. Pita Ferreira, «O Natal na Madeira», edição de 1956, afirmava já que «alguns desses versos são antiquíssimos», acrescentando: «julgo não ser temeridade afirmar que vêm do tempo dos primeiros povoadores da ilha. As orações e o catecismo em verso estavam, nessa época, muito em voga. S. Francisco Xavier deitou mão deles para converter e baptizar os índios»
Por sua vez, o Dr. Rufino Silva, no seu livro «Cânticos Religiosos do Natal Madeirense», 1998, escreve que «não sabemos até que ponto são originais da Madeira, os cânticos considerados «obrigatórios» nas Missas do Parto, como a «Ave-Maria», «Ó Virgem Soberana», «Salve-Rainha», «Salve Doce Amparo», o «Retrato de Nossa Senhora», o «Pai-Nosso», a «Conceição de Maria», «o Bendito ao Santíssimo Sacramento», «Meu Deus que alegria». Constata que já eram populares no início do século XX, pois aparecem em colectâneas impressas para uso dos fiéis, em 1906 e 1907. Segundo afirma, algumas músicas aparecem policopiadas numa colectânea cuja 1.ª edição se presume ser anterior a 1890, e a 2.ª em 1908.
Por um lado afirma ter a certeza que esses cânticos são centenários; mas «fixar a sua origem desde o período da descoberta da Madeira, aí tudo se torna obscuro e incerto».
Por outro lado, afirma que, «da análise textual dos referidos cânticos verifica-se que, tanto na forma como no conteúdo, apresentam vestígios das correntes poéticas da lírica tradicional». Afirma ainda que «os primeiros povoadores, senhores e colonos, provenientes do norte do País e das Beiras, trouxeram para a Madeira essas orações em verso, assim como autos e pastorelas», próprios da época dos descobrimentos. Acrescenta que «outras influências provenientes de povoadores estrangeiros – flamengos, italianos e espanhóis, aos quais se juntaram mouros do norte de África e negros da Guiné – fizeram-se sentir nos cânticos religiosos».
Reconhece ainda que o isolamento da ilha terá contribuído para a conservação de textos e melodias, com modificações que o tempo e uso costumam imprimir. O madeirense, portanto, terá conservado esses textos e melodias, com as modificações que se impunham em cada época.
E conclui Rufino Silva: «Assim, alguns cânticos que chegaram até nós, não serão por certo os da época do povoamento, mas terão as suas raízes numa vivência cultural de mais de quatro séculos», pois já Gaspar Frutuoso, no seu livro, Saudades das Terra, faz referência à actividade musical na Madeira no séc. XVI».
Da tradição à actualidade
O Padre Pita Ferreira, no seu livro «o Natal na Madeira» assinala três tempos fortes na vivência das «Missas do Parto»; a véspera, a madrugada e a participação da missa propriamente dita.
Localizada a véspera em Câmara de Lobos, o referido autor descreve-a como uma autêntica véspera de festa patronal, com a salva e a girândola de fogo ao meio-dia, com a presença da filarmónica que toca os hinos aos festeiros e os visita a domicílio, vivendo essa tarde como um dia de festa, mas dormindo cedo, para poder levantar-se às duas da madrugada, com novos toques de filarmónica e estoirar de foguetório, acordando o povo que deverá dirigir-se, em autêntica romaria, para a Igreja.
O mesmo autor localiza na Ribeira Brava a sua brilhante descrição desta descida, desde os sítios mais distantes, a duas ou três horas de caminho. Por isso mesmo o búzio tocava às duas da madrugada, fazendo juntar as pessoas das redondezas que, tocando instrumentos regionais, como búzios, castanholas, machetes, rajões, violas e braguinhas, vai descendo ladeiras e veredas, avançando e engrossando a multidão, como um «bando de grilos», até à Vila, onde «os Senhoras da Vila» também terminam por abrir os olhos.
Todos, ricos e pobres, senhores e plebeus estão na Igreja às quatro e meia da manhã, para começarem, com todo o calor a cantar o invitatório: «Ao Menino nascer / que gosto teremos! Oh! quanto felizes / Todos nós seremos. Anjos e pastores, Vinde em harmonia / Louvar o Parto da Virgem Maria».
Quanto à celebração propriamente dita, o referido escritor evoca a tradição do Porto Moniz.
Após a entrada solene na Igreja, o padre, junto dos degraus do altar, entoa o «Deus in adjutorium meum intende», que o povo continua: «Domine, ad adjuvandum me festina», para logo começar o «Invitatório» em português, cantado por toda a gente: «Ó Meu Menino, / ó Meu Redentor, / Meu doce Jesus, / Salvai-nos, Senhor», que consta de seis estrofes.
Segue imediatamente a segunda parte da novena. Enquanto o sacerdote se senta e começa a rezar o breviário, o povo canta sozinho a invocação ao Espírito Santo: «Vinde Espírito Santo / Lá das celestes alturas, E, da vossa luz um raio,/ Infundi nas criaturas.
Logo canta o Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em todas as Missas do Parto, que consta de vinte estrofes. Segue-se depois a Ladainha que termina com a Antífona: «Salve, ó Mãe do Salvador, / Brilhante estrela do mar / Deste o Salvador ao Mundo / Fazei-nos no céu entrar».
Após a Ladainha cantam ainda seis jaculatórias à Virgem Maria, sendo a última do teor seguinte: «Virgem do Parto, / Ínclita Maria, / Atendei propícia / Os devotos deste dia».
Terminada a novena que todos cantaram a bom cantar, enquanto o padre rezou o breviário, começa então a missa, onde o Pai-Nosso, a Ave Maria, a Salve Rainha e o Bendito são músicas obrigatórias.
No seu livro «Cânticos Religiosos do Natal Madeirense», Rufino Silva refere ainda que antes da reforma litúrgica conciliar do Vaticano II, o uso do latim obrigava a uma liturgia paralela entre o altar e o povo. Este, que ao longo do ano se mostrava geralmente passivo, gostava de participar activamente e com grande e singular entusiasmo. Como são sabia latim, utilizava o português, rezando o terço, entoando entre cada mistério, cânticos a Nossa Senhora do Parto, da Conceição e do Rosário, Entretanto, no altar o sacerdote fazia outra coisa, rezando a missa em latim.
Com a reforma litúrgica e a introdução do vernáculo nos anos sessenta, os cânticos das «Missas do Parto» ficaram condicionados a determinados momentos da Missa, muito embora ainda se conserve um esquema idêntico da celebração: a Novena com o seu invitatório, a invocação ao Espírito Santo, o Retrato de Nossa Senhora, a Ladainha e a Salve-Rainha. Ficam reservados para a Missa o Pai-Nosso, a Ave-Maria, e outros cânticos obrigatórios.
Uma outra questão a ter em conta hoje em dia, é o tempo que dispõem as pessoas para as cerimónias religiosas que, regra geral, não devem durar mais que uma hora: é o género de trabalho, é a escola, é a barraquinha, é a transmissão radial, são os transportes, é o folguedo, etc. Uma série de considerandos que se colocam à sociedade hodierna para viver a tradição, adaptando-a à forma de viver do século presente.
Do século XIX aos nossos dias
Os Cânticos tradicionais das Missas do Parto e Natal na Madeira conheceram divulgação singular a partir do último quartel do século XIX, nomeadamente a partir de 1877, quando o bispo D. Manuel Agostinho Barreto resolveu reformar o Seminário do Funchal, entregando à orientação dos padres Lazaristas, sob a direcção do Pe. Ernesto Schmitz,, que foi Vice-Reitor de 1877 a 1908.
As primeiras colectâneas de textos e melodias tradicionais das Missas do Parto e Natal madeirense até hoje conhecidas, remontam a 1880-90, 1906-1907, 1908, 1918 e 1920. Nesta última o autor da letra esconde-se nas iniciais N.A.P., que ninguém consegue identificar, e as melodias são quase todas adaptadas de originais franceses e alemães.
Por isso mesmo, devemos distinguir entre tradicionais, popularizadas e de autores consagrados. Aquelas poderão ter vindo dos primeiros povoadores, e estas são constituídas por melodias mais aperfeiçoadas, quanto à composição, que caíram bem na alma do povo que as adaptou, como é o caso da «Virgem do Parto, Ó Maria», cantada no final das celebrações.
A reforma do Seminário teve as sus consequências também no campo musical, pois surgiu na primeira década do século XX, como bem observa Rufino Silva, «uma plêiade de padres-músicos, que dinamizaram a música sacra na Madeira»: Manuel Joaquim Paiva (1867-1935), Cónego Manuel Mendes Teixeira (1875-1945), Pe. José Bibiano da Paixão (1886-1925), Cónego Fernando Menezes Vaz (1884-1954), Pe. Sebastião Antero Gonçalves (1886-1964), Pe. Antonino César de Gouveia Valente (1884-1947) Pe. Joaquim Roque Fernandes Dantas, (1905-1996), para só citar os principais e mais antigos, cujas composições enriquecem o património musical natalício da Madeira, que o nosso povo ainda hoje canta.
Manuel da Gama