Homilia de D. Armindo Lopes Coelho na Bênção das Pastas
“Na verdade, Cristo morreu uma só vez pelos nossos pecados para nos conduzir a Deus. Morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito” (1 Ped. 3,18). Este enunciado contém, como tese, a base essencial do Cristianismo e da Igreja. Base essencial e fundamento da fé cristã. Não é normal mas aceita-se que uma pessoa dê a vida pelo seu semelhante, independentemente do motivo. Que alguém dê a vida, morrendo uma só vez, pelos pecados (para obter e alcançar o perdão dos pecados) de toda a humanidade, de todos os pecadores e pecadoras, já deve merecer questionamento porque pertence à área do mistério. E só com fé se pode permanecer nessa área do mistério. E que alguém, tendo morrido, volte à vida pelo Espírito, triunfe sobre a morte e ressuscite, também não se pode explicar naturalmente nem se pode aceitar senão por razões de fé, que nasce e assenta no testemunho de outrem. E no entanto, é S. Paulo que fala aos cristãos, de ontem e de hoje, nos termos seguintes: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a nossa fé... Se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, nós somos os mais infelizes de todos os homens (1 Cor. 15,14 e 19).
Mas a esperança de que falamos tem uma dupla dimensão, ou melhor, a dimensão terrena de dinamismo e sentido escatológico para se prolongar pela eternidade. A mesma Carta de Pedro que fala da morte e ressurreição de Cristo diz aos cristãos que estejam “prontos sempre a responder, a quem quer que seja, sobre a razão da sua esperança” (1 Ped. 3,15).
Sabemos que não é fácil. Com a data de 28 de Junho de 2003 o Papa João Paulo II, na sequência de um Sínodo dos Bispos sobre a Europa, publicava uma Exortação Apostólica sobre a Europa e a Esperança. Depois de falar de um ofuscamento da Esperança, como consta da crise da memória e herança cristã, do agnosticismo prático e do indiferentismo religioso, do secularismo e do medo de enfrentar o futuro, da fragmentação da existência, do enfraquecimento progressivo da solidariedade e da tentativa de fazer prevalecer uma antropologia sem Deus e sem Cristo, referia-se à nostalgia da esperança e também aos sinais positivos da esperança que não pode faltar. Os homens não podem viver sem esperança, afirma categoricamente: “ É preciso voltar a Cristo, fonte de toda a esperança; é a nossa esperança, porque Ele, o Verbo eterno de Deus que está sempre no seio do Pai, amou-nos até ao ponto de assumir em tudo, excepto no pecado, a nossa natureza humana tornando-se participante da nossa vida, para nos salvar. No contexto do pluralismo ético e religioso actual ... é preciso confessar e propor de novo a verdade de Cristo como único Mediador entre Deus e os homens e único Redentor do mundo” (Eccl. in Europa, 18 ss).
Há conceitos e sentimentos, aspirações e ideais que aparecem e desfilam na pantalha do tempo ao sabor de circunstâncias que surgem e se repetem como sinais e expressões de modas que despontam e desaparecem para regressarem de novo. A esperança, termo e conceito, está incluída na moda do nosso tempo, e não é por razões óptimas. Na área da Igreja preparámos o século XXI, início do III milénio da era cristã, sob o signo da esperança. Acontecimentos muito graves abalaram a nossa esperança, a esperança da Igreja que se incrementava e a esperança da sociedade civil que de há muito estava afectada. Seguiram-se tempos comuns de medo, de insegurança, de preocupação pelo futuro, este futuro que parecia negativamente assinalado. A nível interno (nacional) não evitámos um certo desânimo, que chegou a ser apelidado de depressão colectiva, certamente não generalizada mas classificada como tal. Há muitos fazedores de opinião com “carisma” para catalogar e qualificar pessoas, movimentos e intenções...
Fomos convidados e estimulados a recuperar a esperança, que tem um sentido genérico e neutro, mas é esta neutralidade genérica que lhe afecta o conteúdo e a torna porventura dispensável ou, pelo menos, menos necessária.
Ora, na I Carta de S. Pedro, aqui glosada, a esperança é identificada com Cristo (entenda-se a esperança dos cristãos, identificada com Cristo que morreu por todos para ser esperança para todos).
O Evangelista S. João ajuda-nos a compreender melhor esta doutrina quando alarga o quadro e cenário das realidades concretas, do nosso tempo e do nosso mundo, a partir das palavras de Cristo aos discípulos. Cristo prometia enviar-nos o Espírito Santo para, ao retirar-se, não nos deixar órfãos: “Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu pedirei ao Pai, que vos dará outro Defensor, para estar sempre convosco: o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não O vê nem O conhece, mas que vós conheceis, porque habita convosco e está em vós” (Jo. 14,15-17).
Aqui reside o problema: O conhecimento de Cristo como Deus, o amor a Cristo, a guarda e prática dos mandamentos, a consciência da presença do Espírito, em cada pessoa e na Igreja como comunidade e instituição de pessoas. “Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos”: O Cardeal Ratzinger, na Missa que antecedeu o Conclave que o elegeu Papa (Bento XVI), explicou e elucidou estes problemas que nos envolvem e, até certo ponto, nos imobilizam e paralisam. O Senhor disse-nos: “Não vos chamo servos... chamo-vos amigos” (Jo. 15,15). Ora, entre amigos não há segredos: Cristo revela-nos o Pai, o rosto e o coração, a loucura do amor que O levou à cruz por nós. Por outro lado, a amizade é comunhão das vontades: Idem velle, idem nolle. “Vós sois meus amigos, se fazeis o que vos mando” (Jo. 15,14) (18 de Abril de 2005); “Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos” (Jo. 14,15); “se alguém aceita os meus mandamentos e os cumpre, esse realmente Me ama” (Jo. 14,21).
Se o conceito de esperança está sujeito a reparos e a interpretações não unívocas, o conceito de amor labora na mais ampla equivocidade, a ponto de poder revestir acepções antagónicas. Falar do amor de Deus, do amor a Cristo ou do amor fraterno à luz do Evangelho pode hoje assumir o sentido de realidade ultrapassada, de alienação, de fantasia do irreal, de expressão não-cultural ou anti-cultural. Porque o agnosticismo da moda, o relativismo como dogma e o indiferentismo religioso aspiram a prescindir de Deus e dos seus mandamentos, relegando a Igreja para o catálogo das coisas inúteis e para a margem da sociedade que se assume e prossegue com as suas opções manipuladas e as exclusões previstas.
Se é a Igreja que está em causa ou em crise é a fé em Cristo e o seguimento de Cristo que enquadram o problema religioso da nossa Europa e do mundo ocidental. São bem conhecidos os apelos do Papa João Paulo II logo no início do seu Pontificado em 1978: “Não tenhais medo; abri, escancarai as portas a Cristo”. Repetia este apelo, no passado dia 24 de Abril, o Papa Bento XVI, lembrando que o seu antecessor se dirigia a todos os homens, mas sobretudo aos jovens. E interrogava-nos a todos sobre o eventual medo de deixarmos Cristo entrar totalmente em nós: Não teremos medo de que, entrando em nós, Cristo leve algo da nossa vida? Não teremos medo de renunciar àquilo que nos permite uma vida bela? Teremos medo de perder a liberdade?
Meus caros jovens estudantes:
A Igreja a que pertencemos e que aqui nos reúne para fazer festa neste Ano da Eucaristia é uma Igreja que tem futuro porque, além do mais, tem e guarda memória do passado, e particularmente das origens. E os acontecimentos e sentimentos das origens são normativos para o presente e para o futuro. E são a prova da sua actualidade e autenticidade, enquanto Igreja que não é do mundo mas está no mundo, enviada ao mundo, não para condenar mas para salvar o mundo. Como Cristo.
Os Actos dos Apóstolos são a história das origens. Falam-nos da pregação e testemunho dos Apóstolos sobre Cristo e o Espírito. Falam-nos de multidões que começaram a acreditar, aderindo aos ensinamentos dos Apóstolos e aceitando a missão e a liturgia dos Apóstolos que lhes impunham as mãos para receberem o Espírito Santo, e maravilhavam-se com os prodígios que a Igreja realizava. E houve muita alegria nas cidades onde o Cristianismo chegou e onde o Espírito Santo actuou para transformação interior das pessoas.
Procurai viver e enfrentar as situações mais problemáticas do presente, com esperança no futuro da vossa família, da vossa profissão, da nossa sociedade. Não extingais a alegria da vossa juventude, mas procurai atingir os vossos ideais na Universidade e no mundo com o optimismo que resulta da fé cristã, vivida com firmeza e também com tolerância, com sentimentos de fraternidade, com propósitos de serviço e de colaboração para uma sociedade mais próspera e mais justa, que reencontre a alegria de viver, com esperança e em paz.
Porto, 1 de Maio de 2005
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto