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O documentário filma as realidades, a ficção simula o real

Voz Portucalense
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À Conversa com... Cineasta Manoel de Oliveira

A paixão pelo cinema VP – Já com 6/7 anos assistia ao teatro e cinema, vindo depois na juventude a ser um excelente atleta (campeão de salto à vara pelo F.C.P.), mas a paixão pelas artes do espectáculo acabou por ser mais forte... Manoel de Oliveira (MdO) – Nunca parei de ir ver cinema e ia ver com o meu irmão. Fui às Companhias todas no Porto, como fui à Ópera e ao circo também. Tudo isso ajudou a minha formação artística, mas em especial o cinema. VP – Como era o cinema naquela altura em que começou a ter uma maior ligação e contacto? MdO – O cinema era o que se representa hoje na cinemateca. Naturalmente que o cinema começou devagar e depois tornou-se numa sétima arte ou arte muda. O cinema era mudo, não era ainda sonoro e era mais onírico. Depois, com a requisição do som e da cor, tornou-se mais real. A diferença hoje é a técnica extraordinária, quase absorvente, sobretudo do cinema americano, e que se sobrepõe ao lado artístico. Quer dizer, quase que anula o lado artístico para se impor o lado técnico, das suas possibilidades e capacidades, que levam a visões extraordinárias, mas, na verdade, artisticamente pouco válidas. VP – Chegou a ter alguma relação - colaboração e/ou participação - no cinema e palcos de Hollywood? MdO – Não tive nada com os americanos, eles é que tiveram uma formação do cinema europeu. Eles, mais tarde, é que se encaminharam mal, porque na medida em que se anuncia um cinema ou um filme pelo preço que custou e se anuncia um filme pelas frequências que tem, não é de qualidade. As coisas mais inferiores e de menos interesse ocupam mais atenção do geral, da massa comum. É uma coisa que distrai, não obriga a pensar nem outro esforço similar. Isso atrai mais facilmente as multidões, mas não quer dizer que seja melhor. Normalmente a qualidade, a meu ver, reduz as audiências; não é o número destas que faz a qualidade dos filmes. De resto, os concertos e as óperas são espectáculos de poucas audiências, mas refinam no seu lado artístico. Por vezes, as pessoas são ainda meninos, ou seja, não são verdadeiramente preparadas para depois se interessarem por esses eventos mais ricos artisticamente. Cultura e anti-cultura VP – Isto talvez se deva ao confronto duma realidade de anti-culturas, isto é, a cultura do divórcio, a cultura das infidelidades, a cultura do aborto, tudo o que atenta a nossa dignidade e formação. Não acha que há um aumento destas deformações com o surgir de muitos filmes que andam por aí? MdO – Sim, isso é certo. Mas isso não se deve só a muitos filmes, mas também, por exemplo, a audiência que tem o futebol. É incrível. Não sou contra o futebol nem o desporto, mas sou um pouco contra o desporto de competição. O que interessa verdadeiramente no desporto não é a competição, é a saúde física, a agilidade e, enfim, a facilidade de exercícios que as pessoas ganham com os próprios exercícios que fazem. Isso é que é um contributo, muito grande e grato para a humanidade. A competição, por outro lado, arruina as pessoas que têm um exercício forte e excessivo. Acabam por morrer mais cedo, por ter problemas nas articulações, etc. Isso é que é mais grave. O mundo encaminha-se pelo lado mais fácil: é como a água. A água corre por onde desce, nunca por onde sobe... VP – Neste sentido acha que podemos equiparar esses filmes com as (tele)novelas, visto esses conteúdos serem a base e preferência, apesar da diferença do espaço e tempo de duração? MdO – Sabe que, enfim, trata-se dum ponto de vista da comercialização da arte. E a arte não se fez para ser comercializada. Antigamente, na antiga Grécia os espectáculos eram subsidiados pelo Estado. Quer dizer, este pagava aos dramaturgos para escreverem as peças; pagava aos actores para as representarem e pagava ao público para verem as peças. O Estado entendia que este era um processo de educação ao povo. É claro que, desde que se deixou de fazer, a decadência veio e veio para o mais fácil. Da maneira tal que os lagos enchem com a água que escorre do alto, não ao contrário. O que a arte pretende é subir, não descer, é elevar o conhecimento de si própria, da própria humanidade aos humanos. Esta é a grande finalidade da arte e não a reprodução e imitação da vida a fim de se fazer juízo dela. Cinema/arte VP – O cinema sempre foi considerado uma forma de arte? MdO – O cinema ganhou esse estatuto com os grandes mestres, que eram grandes artistas. A sua tendência era qualificar o cinema como obra artística. E conseguiram, porque a determinada altura o cinema passou de obra de feira a obra artística, chamada sétima arte ou arte muda. VP – Acha que ainda há, a longo prazo, quem siga ou possa vir a seguir esta linha ideológica desses grande mestres para que o cinema nunca deixe de ser uma arte? MdO – A arte como a pintura, ou a música ou a literatura – os grandes livros – esses ficarão para sempre, não há dúvida nenhuma. Não podem acabar. O espectáculo fica. Essas grandes obras ficarão como exemplo e como pontos básicos. “Os Lusíadas” de Camões, o “D. Quixote” de Cervantes ou até mesmo os escritores russos do séc. XIX ou outros, como Shakespeare e os gregos, continuam connosco. Quer dizer que a sabedoria e inteligência têm um tecto e esses atingiram esse tecto. Ao ser humano não lhe é possível ir mais além, portanto igualam-se, os antigos e os modernos. Isto porque há valores que são eternos e outros que são temporais... Valores perenes VP – Quais são esses valores que considera eternos? MdO – Os que são constantes e perenes. Ou seja, é reprovado o assassínio, ninguém pode dar prova e fazer lei que liberte o assassino. Um ponto difícil, por vezes, é por exemplo saber se é assassínio ou não assassínio. Este ponto é quando não se trata de salvar a vida da mãe ou quando se trata duma doença. Este é um problema difícil de conceber e ultrapassar e ficar-se-á sempre nesse problema, quer a lei favoreça ou quer a lei contrarie. Por trás disto um valor tão grande: a saúde. No meu entender é prioritário em todos os governos e em qualquer país. Um povo sem saúde não é válido. E a seguir é a educação e, depois, a cultura. Estes são os valores governamentais para fazer um país válido e capaz para o futuro. VP – Está à vista de todos que conserva bem esses valores, pois já passando os 90 anos continua bem activo, criativo e dinâmico. Qual é o poço donde bebe essa “água” refrescante e energética? MdO – Esses valores recebi-os na infância e juventude. Foram-me dados pelos meus pais pela educação em si, porque ensinaram bem. No ensinar mal não há mérito, mas demérito. E a idade ou longevidade não é um mérito da pessoa, é um capricho da natureza. A natureza é extremamente caprichosa: dá a uns o que tira a outros. A pergunta que faço a mim mesmo é: terei eu mais merecimento do qualquer outro que morre mais cedo, doente ou em sofrimento? Onde está a justiça? Porque se faz isso a uns e não a outros, quando somos todos iguais? VP – Mas não acha que, por outro lado, a resposta possa ir ao encontro de um pequeno mérito seu, na medida em que não tem vícios e comportamentos menos saudáveis ao corpo? MdO – Tenho vícios, dado que toda a gente cai num vício. O que agrada no vício é o próprio vício. O vício sem vício não é vício. De maneira que o agradável é o próprio vício e a isso poucas pessoas resistem. E o meu vício é o cinema. Não é que me prejudique muito (risos)... Papel dos actores VP – Pode dizer-se que só é bom actor aquele que aparece em bons filmes ou que tem os papéis principais? É legítima esta analogia? MdO – Não, não se pode. Porém, é claro que esse faz-se bom actor. O bom actor também pode fazer um papel secundário. Isso depende da qualidade intrínseca da natureza própria do actor, se tem vocação ou não. Se tem afirma-se e ganha mérito, se não tem é inútil, porque não chegará e não se ensina. Se não tem o dom tem que procurar o seu dom, porque uns têm dom para uma coisa e outros têm dom para outra. VP – Como é que funciona ou qual é o critério de escolha e distribuição dos papéis principais? Cabe apenas ao realizador fazê-lo ou coloca-se à escolha dos actores? MdO – À escolha dos actores não! Esse é um momento crucial do realizador, pelo menos para mim. Porque há casos e casos, mas eu falo por mim. Ou se joga certo na distribuição e o filme se realça favoravelmente ou se falha e depois não há mais conserto, porque se os actores têm os papéis trocados passam, deixam de ser actores para ser o próprio personagem, a configuração do personagem. Se errou ele nunca mais lá vai. VP – Acha que alguma vez errou a escolher determinado actor/actriz para determinado filme? MdO – Eu creio que não, porque do meu ponto de vista era assim que se devia fazer. Porque depois de decidir não posso achar que está mal. VP – E o critério da empatia entra em palco, ou seja, se simpatiza ou gosta mais deste ou daquele atribui-lhe um melhor papel ou de maior destaque? MdO – Não há critérios, é intuitivo. Não podemos explicar tudo o que fazemos. Mas, com certeza, que é uma simpatia ou empatia com quem escolhemos, que faz com prefira este para um papel e aquele para o outro papel. Ou então a inquietação de não encontrar o sujeito para o papel que quer até que, finalmente, encontra e fica satisfeito porque corresponde às necessidades da sua visão do personagem. VP – Antes de enveredar pela realização chegou a representar em alguma película? MdO – Sim, comecei por aí, mas não me senti com grandes capacidades para ser actor. Também receava ser realizador ou escrever histórias, mas acabei por ver um filme dum alemão, com sentido humanista, que me tocou e senti: “Ah, eu também serei capaz de o fazer!”. A partir daí, com certa segurança, fiz o meu primeiro filme, “O Douro, faina fluvial”, entre 1928/1930. Apresentei em 1931 ao Congresso da Crítica, em Lisboa, que foi fortemente pateado e aplaudido pelos estrangeiros. VP – Já realizou vários géneros cinematográficos ou normalmente é sempre do género ficção? Qual lhe agrada mais? MdO – Não. A ficção abrange todos os géneros da ficção. Há uma divisão entre a ficção e o documentário. O documentário filma as realidades, a ficção simula o real. Agrada-me mais a ficção. (...) Hoje tenho uma concepção muito diversa do cinema, do que tinha na altura em que fiz o meu primeiro filme. VP – As pessoas ao escolherem e verem um filme procuram o que há de real nele ou cingem-se ao facto sensacional e do “happy end”? MdO – As pessoas querem estar entretidas e iludidas. O cinema hoje funciona como uma droga: as pessoas estão ali envolvidas naquilo. O público vai nisso, mas não corresponde ao fundo de realidade. É muito difícil fazer um filme sem artifícios, em que o realizador se apague e mostre a história daquilo que conta – que é o mais válido – com candura, simplicidade, frescura, força e autenticidade. É muito difícil, mas é mais válido. ASPECTOS DE ELEIÇÃO: VP – Um filme vs. um realizador... MdO – Não aconselho nenhum, mas o que acho mais surpreendente é o “Gertrude” e um realizador é, precisamente, o desse filme: o dinamarquês Carl Dryer. VP – Um filme seu... MdO – Não refiro nenhum meu, mas o melhor é sempre o próximo, que estreará entretanto. Chama-se “Espelho Mágico”, inspirado na obra “A alma dos ricos”, de Agustina Bessa-Luís. As filmagens começaram em Março. VP – Um actor português... MdO – Não há nenhum actor melhor do que outro. Essa espécie de competição eu não gosto de fazer. Cada um tem as suas qualidades próprias. Luís Miguel, por exemplo, é um grande actor, mas há outros que são diferentes, graças a Deus, porque se fossem todos iguais não tinha interesse nenhum. VP – Uma actriz portuguesa... MdO – Há grandes actrizes. Por exemplo, como a Beatriz Batarda e a sua prima, Leonor Silveira. Há também a Maria de Medeiros.


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